Setores de seguro e resseguro viram o começo de profundas transformações
Após radical processo de financeirização que restringiu o conteúdo e prejudicou a boa execução dos seguros, tanto os de grandes riscos, cuja debacle foi agudizada com o ocaso da construção civil pesada, como os seguros massificados, não obstante o hipertrofiado glamour do crescimento dos ramos de garantia estendida e crédito a prestamistas, vinculados ao crescimento do consumo, hoje os setores de seguro e resseguro brasileiros passam por mudanças e sofrerão profundas transformações nos próximos anos.
A situação é crítica em razão da falta de política governamental para o setor e a ausência de lideranças no meio securitário e ressecuritário nacional. Hoje predominam dirigentes de seguradoras que, provavelmente, depois da experiência brasileira, serão reconduzidos para países de economia mais forte, resultando, quando muito, ações e interlocuções de curto prazo. As instituições icônicas do mercado, como a confederação das seguradoras (CNSeg), os sindicatos e federação dos corretores, como a Fenacor, e a Escola Nacional de Seguros, entre outras, vêm sofrendo importantes restrições de recursos, em grande parte causadas pela interrupção do fluxo de subsídios oriundos da operação do seguro DPVAT. É natural esperar radical revisão e amadurecimento no seio dessas entidades, paulatinamente rumando a CNSeg para modelo similar ao da Febraban, com maior democratização do poder diante das instituições confederadas, e quiçá a mudança de seu domicílio, como também o da Susep, para o Distrito Federal.
Ao mesmo tempo, na seara estatal, merece foco o recente posicionamento dos funcionários da Susep, de novembro de 2017, colocando cargos à disposição e clamando pela autonomia técnica da entidade, abalada pela ausência de política para o setor e pelo mau uso da máquina pública. Em nota dirigida ao Ministro da Fazenda, os servidores da Susep manifestaram a “profunda tristeza e indignação do corpo funcional da autarquia com o desrespeito e o descaso que têm sido dispensados por esse governo…”.
Enquanto o Conselho Nacional de Seguros Privados e a Susep terminaram o ano editando normas flexibilizadoras dos repasses de resseguros para o exterior, pondo abaixo a obrigatoriedade de contratação no Brasil e permutando-a pelo dever de oferecimento de preferência, importantes seguradoras internacionais de atuação mundial, aqui estabelecidas, vêm colocando nas suas apólices cláusulas ilícitas que resultam da insegurança do negócio, como as cláusulas de pagamento prevendo que as indenizações somente serão pagas aos segurados se e quando recebidas pela seguradora as recuperações de resseguro devidas pelas resseguradoras estrangeiras.
A Susep, no entanto, vem logrando sucesso para a implantação das regras uniformes de solvência internacionalmente conhecidas pelos numerais I e II, colocando o país, nesse campo, no mesmo patamar dos mais desenvolvidos. É proteção importante para dar base ao adimplemento das obrigações das companhias seguradoras.
Merecem atenção e exigirão tratamento pontual os processos de discriminação que o andamento normal dos negócios de seguro veio estabelecendo no país, com a exclusão de inúmeros setores sociais e produtivos, e recentemente com a exclusão substancial de entidades da federação como o Rio de janeiro, onde praticamente desapareceu ou se tornou proibitivo o preço do seguro de transporte, que é tão relevante para os negócios, e onde até mesmo a venda de seguros automóveis foi suspensa. A erradicação das diferenças regionais e a ação solidarizante dos seguros estão ameaçadas e o sistema carece de reorientação.
Apesar desse estado de coisas, na perspectiva dos números, muito festejados pelos analistas aritméticos, houve crescimento da produção de prêmios de seguro e principalmente de resseguros, com razoável concentração nas operações das resseguradoras locais. Ao lado do seguro saúde e da previdência privada, o verdadeiro carro chefe do crescimento tem sido o seguro rural, mostrando a inserção do negócio securitário no principal setor da economia, o agronegócio. E ainda há muito a crescer, pois asseguramos apenas 15% da área plantada, enquanto nos EUA abrangem 90% da área plantada).
O seguro automóvel continua a figurar como o mais importante instrumento de arrecadação do mercado, com resultados enxutos, porém. Com o prenunciado ocaso do regime do DPVAT que garante apenas danos pessoais, seguro que além de prover indenizações pífias que mal permitem cobrir com terra os pés das vítimas de acidentes fatais, vem sendo posto em xeque por ações civis públicas e assiste ao término da distribuição de subsídios para as entidades do setor, é muito provável que ressurja o seguro obrigatório de responsabilidade civil automobilística, modelo predominante na experiência contemporânea internacional, onde provê arrecadação substancial de prêmios e paga às vítimas de danos pessoais e materiais quantias realmente capazes de cumprir a função indenizatória.
Na área da venda de seguros, o dogma da intermediação veio cedendo passo às experiências de insurtechs, que ainda se restringem demasiado às cotações on line, mas certamente evoluirão para permitir o relacionamento próximo e direto entre segurados e seguradoras durante a execução dos contratos de seguro, por exemplo nas situações de regulação de sinistro. A Porto Seguro parece rumar para o aprimoramento de suas atividades de aplicação da tecnologia aos serviços securitários, inclusive nos casos de sinistros, ao mesmo tempo em que a Caixa Seguradora enfrentou o governo para manter viva a experiência de sua plataforma Youse. Bradesco e Itaú, entre outras, também vêm desenvolvendo suas startups tecnológicas.
Ainda no campo das intermediações, os grandes fundos de investimento, orientados a procurar modelos de negócio que possam sobreviver por longo prazo, parecem já se preocuparem com a excessiva cobrança de gastos de comercialização e tendem a rejeitar carteiras sobre oneradas com comissionamentos, como a de garantia estendida que vazam 60% das receitas de prêmio para o pagamento dos custos de comercialização. Se essa é uma face positiva de certos investidores, por outro sabe-se que a maioria mede o negócio pela sua rentabilidade e põe seus executivos em busca de fórmulas capazes de acelerar a lucratividade dos negócios, o que restringe a base de clientes do sistema e muitas vezes conflita ou suprime a funcionalidade social dos seguros e os interesses da sua estrutura mutualística, o que é preocupante no momento em que os capitais estrangeiros se avolumam nas atividades de seguro e resseguro, a exemplo da notícia de venda do controle do IRB para grupos como Swiss Re e Berkshire Hathaway.
O ano que finda também mostrou, com a criação das ouvidorias das seguradoras, o crescimento da conscientização e o grau de insatisfação dos consumidores, iniciando diálogo que permite a reparação de condutas equivocadas (30% das reclamações são procedentes na experiência de uma das maiores seguradoras em operação no país) e a identificação de zonas sem clareza nos documentos e técnicas utilizados na atividade seguradora (propostas, apólices etc.).
No plano judicial, após o vaivém da orientação jurisprudencial, que há uma década pendia para os segurados e nos últimos anos passou a flertar com a proteção das seguradoras, nota-se o surgimento de tendência ao agasalhamento das principais estruturas jurídicas atinentes aos contratos de seguro, o que pode conduzir ao reequilíbrio.
A teoria do interesse plasmada no artigo 757 do Código Civil, por exemplo, foi recentemente prestigiada em acórdão do STJ relatado pela Ministra Nancy Andrighy (REsp 1613589, acórdão unânime de 18/12/2017), amainando o dogma segundo o qual a cobertura restringe-se aos casos em que há dano físico, como se veio tentando implantar nas apólices de riscos de engenharia e operacionais, entre outros: “a noção de interesse segurado pode ser ampliada para que o contrato de seguro possa desempenhar corretamente sua função nas mais diferentes situações”.
Finalmente, no plano legislativo, o Brasil caminha a para sua primeira lei de contrato de seguro onde são bem resolvidas questões como as políticas discriminatórias de subscrição de riscos, a ação direta da vítima contra a seguradora, o ônus da prova das exclusões de riscos, a necessidade de ser concedida oportunidade para a purgação a mora dos segurados antes da suspensão da cobertura do seguro, a eliminação do agravamento de risco como fator prejudicial à cobertura dos seguros pessoais, a necessidade de garantir seguro com igual utilidade aos segurados que tenham envelhecido ou adoecido após longo período de contratação de seguro de vida e acidentes pessoais, a definição da ciência da negativa da seguradora como termo inicial dos prazos de prescrição, a incidência obrigatória da lei brasileira nas arbitragens, impondo-se sua sede no Brasil, e a publicação das decisões dos tribunais arbitrais em repositórios que permitam a propagação da experiência jurídica securitária no país.
O PLC 29/2017, nascido dos esforços iniciados no seio do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS), hoje conta com o apoio das entidades representativas dos consumidores, como Brasilcon e Idec, das entidades que representam as atividades empresariais, como CNI e Fiesp, da Comissão de Direito Securitário do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, assim como o apoio igualmente enfático do setor segurador, representado pela CNSeg, pela FENACOR e por inúmeros representantes do setor ressegurador brasileiro.
O primeiro semestre de 2018, independentemente das atividades eleitorais, será definidor dos grandes rumos para os setores de seguro e resseguro, aprimorando ou estagnando o importante instrumento de proteção das pessoas, das empresas e do desenvolvimento nacional.
Fonte: Revista Consultor Jurídico