Seguro: entre a obrigatoriedade e a exigência social
Os Estados instituem seguros obrigatórios em razão da importância que determinados fatores de infortunística assumem na sociedade. Isso acontece com seguros que garantem indenizações às vítimas de trânsito.
O legislador identifica aí uma situação de risco que merece ser protegida pelo sistema de seguro e torna compulsória a contratação do seguro respectivo. As leis sobre a matéria, assim como a doutrina, propõem que esse tipo de interferência estatal somente ocorra mediante a imposição por meio de lei. Afinal, o art. 5.º, inciso II, da nossa Constituição Federal dispõe: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. No Brasil, a competência é exclusiva do Congresso Nacional. Assim, a liberdade contratual e a autonomia da vontade são preservadas.
O processo é análogo ao que acontece com as chamadas “normas técnicas” que, embora não tenham entre nós a força de normas jurídicas, pois são produzidas por uma associação de utilidade pública sem poderes legais para produzir normas imperativas, têm alto prestígio no meio técnico, nas entidades disciplinares e nos tribunais em geral. Conforme avança o conhecimento tecnológico em determinadas atividades, como as de engenharia, condutas se revelam de tamanha importância que a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) resolve normatizá-las.
Acontece, porém, que, muitas vezes, as regras da arte se desgarram das normas técnicas, às vezes, até mesmo, contrariando-as. Uma determinada conduta técnica não normatizada, porém, poderá corresponder àquilo que a sociedade pode fruir de mais avançado. Nesse caso, prevalece sobre a norma técnica, cuja produção geralmente é demorada e, por isso, pode se divorciar do chamado “estado da arte”. Quando uma regra da arte contrariar uma norma técnica, a doutrina entende que aquela há de prevalecer e esta deve ceder, ainda que assentada em lei.
O que acontece com as regras técnicas, também acontece com os seguros. Muitas vezes, seguros obrigatórios podem perder todo o seu sentido de proteção social em razão de avanços tecnológicos. E a recíproca é verdadeira. Seguros que não são previstos como de contratação obrigatória pela lei se revelam compulsórios por força da sua exigência concreta pela sociedade.
Todos sabemos que, hoje em dia, sem seguro, as companhias não conseguem colocar suas ações em bolsa, nem captar capital intensivo para o desenvolvimento de suas atividades econômicas, uma vez que o mercado acionário e as instituições financeiras exigem a manutenção das proteções patrimoniais daquele que se propõe a captar recursos. Não conseguindo contratar seguros para proteger seu patrimônio, passam as companhias abertas a correr o sério risco de serem deslistadas do mercado bursátil ou chamadas a honrar antecipadamente os contratos de financiamento de longo prazo, quando a celebração dos negócios tenha sido condicionada à continuidade de asseguramento dos interesses patrimoniais (ativos e responsabilidades) expostos a riscos.
Também para participar de inúmeros negócios que são essenciais para o exercício da atividade empresarial e profissional, as pessoas e as empresas podem deparar com a exigência socialmente estabelecida de seguros. Quem não tem acesso a seguros poderá ser impedido do exercício dessas atividades. São os casos, entre outros, das participações em processos de compra de bens e serviços públicos e privados e das parcerias público-privadas (PPPs). Os seguros, portanto, também nesses casos, por corresponderem a exigências sociais, são concretamente compulsórios. Dizer que a contratação de seguro por uma sociedade dedicada à concessão de rodovias públicas é mero ônus significa negar-lhe todas as chances de exercer seu fim social.
A doutrina em geral, mesmo a não jurídica, reconhece a importância dos seguros para o desenvolvimento das atividades econômicas, como as relacionadas à indústria do óleo e gás.
Das diversas atividades exploratórias de petróleo e gás, a perfuração em ambientes extremos pode ser considerada como um dos mais significativos e complexos problemas, tornando-se um grande desafio tecnológico e operacional. O mercado de seguros deve trabalhar em parceria com a indústria de petróleo e gás desenvolvendo produtos que atendam às necessidades de ambas as partes, assegurando que as companhias de óleo e gás possam operar em ambientes extremos, dispondo de capacidade financeira suficiente para cobrir integralmente os riscos envolvidos e proporcionar retorno adequado aos fornecedores de capital para o restabelecimento do desequilíbrio financeiro provocado por danos e prejuízos. Por sua vez, é importante que a indústria de petróleo adote normas que garantam a segurança e confiabilidade na concepção e execução de perfuração em ambientes extremos.
A relevância da adequada proteção dos riscos associados a atividades que implicam inovação e avanço tecnológicos afluiu para a formulação do “princípio da audácia”, aquele princípio securitário que, longe de impulsionar o agravamento dos riscos, funcionaliza o seguro para permitir ao empreendedor que se comporte com o arrojo necessário para o avanço produtivo. Tem-se aí o que Comparato denomina função estimulante do seguro: “Graças à garantia do seguro, o empresário, aliviado do peso dos riscos, poderá mais facilmente lançar-se à conquista de novos mercados, como poderá mais facilmente mobilizar os seus créditos junto às instituições financeiras” (COMPARATO, Fábio Konder. O seguro de crédito. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1968, p. 13).
No auge do império das políticas de governança, a falta de contratação de proteções essenciais para a defesa de interesses relevantes das companhias e daqueles com as quais elas interagem, durante o exercício de suas atividades econômicas, é comportamento merecedor da mais severa glosa.
A diferença, portanto, entre os seguros que se impõem na vida social e os seguros instituídos formalmente como obrigatórios pelo legislador, não é ontológica.
Quando se fala em riscos que ameaçam atividades da mais alta relevância para o desenvolvimento econômico e social de uma nação, em especial, a tênue distância entre os seguros lembrados pelo legislador e aqueles que se revelam impostergáveis não pode deixar de ser distinguida.
*Ernesto Tzirulnik, presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS);
Júlia Normande Lins, advogada, especialista em Direito do Seguro, sócia de Etad
Por: Ernesto Tzirulnik e Júlia Normande Lins
Fonte: Portal Estadão