O abandono da ideia de fundir Susep e Previc
Vitor Boaventura*
Nos últimos dias a imprensa noticiou que o governo recém-empossado já desistiu, ao menos por ora, do plano do ministro da Economia, Paulo Guedes, de fundir a Superintendência de Seguros Privados (Susep) com a Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc), a fim de criar um novo órgão fiscalizador de seguros e previdência privada. Convém cautela quanto a essa suposta desistência, uma vez que o atual governo tem sido profícuo em vaivéns.
Contudo, em que pese não terem sido divulgadas as razões que possam ter levado o ministro Paulo Guedes a desistir de seu plano de unir as autarquias – e mesmo que nos próximos dias, ou meses, haja um recuo nessa desistência – o assunto chama atenção para o relevante debate sobre a independência e autonomia na tomada de decisões pela Susep e pela Previc. O início do atual governo, que tomou para si a agenda reformista e de liberalização da economia, constitui uma perfeita janela de oportunidade para uma discussão mais aprofundada sobre a independência e a autonomia decisória dessas autarquias.
A fusão da Susep com a Previc, caso implementada, não seria uma medida singela e ultrapassaria o campo administrativo e orçamentário do Estado, atingindo os interesses dos consumidores de seguros e dos participantes de previdência complementar de todo o País. Objetivamente, a fusão das autarquias afetaria a forma como é atualmente exercida a regulação nesses setores que são fundamentais à gestão privada de riscos, à segurança financeira de milhares de famílias brasileiras e à economia nacional como um todo.
A Susep é a responsável pelo controle e pela fiscalização dos mercados de seguro e resseguro, além de capitalização e previdência aberta, excluído o segmento seguro saúde, que desde agosto de 2001 encontra-se sob a supervisão da Agência Nacional de Saúde Complementar (ANS). A Previc, por sua vez, é responsável pela supervisão e controle sobre as Entidades Fechadas de Previdência Complementar (EFPCs), que são as entidades nas quais há a obrigatoriedade: (1) de vínculo empregatício entre o participantes e a empresa patrocinadora do fundo; (2) de vínculo associativo entre o participante e entidade de classe instituidora do fundo.
O mercado de seguros tem crescente participação no Produto Interno Bruto (PIB). A participação dos mercados supervisionados pela Susep alcançou 3,77% do PIB em 2017. Igualmente relevante, o sistema de previdência complementar é elemento fundamental na captação da poupança interna no país, e cresce a cada ano. Em dezembro de 2017, os investimentos das Entidades Fechadas de Previdência Complementar (EFPC) ultrapassaram 800 bilhões de reais, representando aproximadamente 12% do PIB nacional.
Apesar de a integração de estruturas apresentar ganhos potenciais e ter importância no atual contexto em que é preciso ‘fazer mais com menos’, a medida incorreria no risco de obliterar o debate sobre a autonomia e a independência na tomada de decisões pelas autarquias, funcionando como uma cortina de fumaça. Nessa perspectiva, o recuo do ministro Paulo Guedes é positivo, pois mantém em aberto a possibilidade de aprofundamento do debate sobre a independência. A construção de um ambiente propenso à liberdade dos técnicos para a tomada de decisões técnicas no âmbito interno das autarquias deve estar entre as prioridades da equipe econômica.
Autonomia e independência que, aliás, não se conquistam com a mera previsão em Lei ou regulamento. Elas são representativas de uma conquista institucional – fruto do esforço no sentido da sua materialização, e símbolo da consciência dos agentes políticos da sua importância. Qualquer debate sobre o futuro da Susep, da Previc, ou de uma eventual futura autarquia resultante da fusão das duas primeiras há de tocar no tema da independência e autonomia decisória. A experiência institucional do mundo, sobretudo dos países que avançaram em uma agenda de liberalização, como a Inglaterra e os Estados Unidos, mostra a importância da construção de instituições de expertise para a tomada de decisões de conteúdo técnico – livres da captura por grupos de interesse.
Historicamente, esses países criaram as chamadas Agências Reguladoras Independentes que oferecem uma série de vantagens. As agências fortalecem o exercício da accountability, conferem maior credibilidade aos programas de liberalização econômica e proporcionam uma maior especialização na definição dos objetivos regulatórios. As agências também oportunizam a conquista da legitimidade procedimental mais facilmente, na medida em que apresentam um processo de tomada de decisões mais plural e transparente.
O Brasil, que já adota o modelo de agência em outros setores da economia, como telefonia, aviação civil e transportes, vivencia na prática os limites e as possibilidades do modelo que, apesar de não ser perfeito e não estar imune à captura por grupos de interesse, é o que apresenta maiores chances de sucesso, por dar espaço ao controle social e legislativo, além de fomentar a transparência e implantar métodos de procedimento para os processos internos de tomada de decisões. Além disso, o modelo permite a paulatina renovação da composição das agências, proporcionando uma composição plural e a correção de indicações politicamente enviesadas.
A propósito, o Fundo Monetário Internacional elaborou, em 2012, uma avaliação sobre a independência funcional da Susep à luz da aplicação, pela Superintendência, dos princípios da Associação Internacional de Supervisores. Na ocasião, registrou-se, entre as conclusões, a existência de elementos que minam a independência e a capacidade da Susep de realizar plenamente os seus objetivos. Percebeu-se haver uma carência de requisitos mínimos para a indicação e a nomeação dos diretores e superintendentes, que eram e continuam a ser livremente nomeados e demitidos pelo Poder Executivo. Em relação à autonomia orçamentária, de suma importância, verifica-se que o, agora, Ministério da Economia a prejudica na medida em que guarda total ingerência sobre o orçamento e a aplicação dos recursos da Susep. A captura da Susep e os desvios havidos em sucessivas gestões, não obstante os excelentes quadros técnicos de que dispõe, não é novidade alguma e já gerou muitas discussões na autarquia e na sociedade.
A Previc também tem, em seu histórico, indícios de captura e ingerência política no conteúdo de suas decisões. No ano de 2015, em que os principais fundos sob sua fiscalização registraram perdas monumentais, a impor sobre os participantes déficits que deverão ser corrigidos por muitos anos, inclusive por meio de descontos em suas aposentadorias, a autarquia atribuiu os prejuízos em seu relatório anual tão somente ao contexto econômico adverso, mesmo quando já eram substanciais os indícios de captura e corrupção na gestão dos fundos. Apenas no caso do Funcef, dos funcionários da Caixa Econômica Federal (esta a patrocinadora), a EFPC elaborou plano para o equacionamento do déficit acumulado até o exercício de 2014, que totalizou R$ 1,9 bilhão de reais, dos quais 50% serão custeados pelos da ativa e assistidos, durante dezessete anos e quatro meses. Registre-se que o déficit manteve uma trajetória de crescimento e alcançou o incrível patamar de R$ 7,3 bilhões no primeiro semestre de 2018.
Através da consolidação de um ambiente de independência e autonomia, os consumidores de seguros e os participantes nos fundos de previdência complementar de todo o País certamente se beneficiariam com decisões de maior qualidade técnica, e com uma realidade de maior segurança jurídica e previsibilidade. Erros observados no passado sobre a regulação desses setores, cruciais à vida econômica nacional e à segurança financeira das famílias, poderiam ser evitados ou mitigados.
A construção de um ambiente mais saudável, portanto, passa necessariamente pelo fortalecimento da independência e da autonomia decisória nas autarquias. As ações da equipe econômica liderada pelo ministro Paulo Guedes certamente irão esclarecer o caminho escolhido pelo novo governo em relação à esta fundamental agenda.
Espera-se que a decisão do time de Guedes seja pela construção de um debate consciente e que vise a materialização da autonomia e da independência decisória nessas autarquias, a exemplo dos EUA e da Inglaterra. Esses países, que servem de inspiração à equipe econômica do novo governo, historicamente perseguiram, e perseguem, a construção e a manutenção de um ambiente decisório efetivamente autônomo e independente às suas autarquias e agências reguladoras. Se a equipe econômica seguirá o seu exemplo, o tempo dirá.
Não é demais lembrar, por fim, que um bom regime legal é indispensável para orientar a produção normativa das agências de seguro e previdência, sendo urgente a aprovação pelo Congresso Nacional de leis destinadas a essa delimitação, como é o caso da Lei de Contrato de Seguro (PLC 29/2007), aprovada na Câmara dos Deputados após 14 anos, hoje em tramitação no Senado.
*Vitor Boaventura, advogado, mestre em Regulação pela London School of Economics and Political Science, é sócio de Ernesto Tzirulnik Advocacia
Fonte: Portal Estadão