Normas da Susep pioram o já destratado seguro de riscos de engenharia
Nos idos de outubro de 2015, a Superintendência de Seguros Privados (Susep) se dedicou à tarefa de tentar regular o seguro de riscos de engenharia e responsabilidade civil conexa.
Lançou à consulta pública esboço de texto, que cerca de um ano depois, no dia 17 de outubro corrente, chega como norma por meio da Circular SUSEP 540.
Logo que disponibilizado o conteúdo da futura circular, manifestamo-nos no sentido de rechaçar a concretização da mal elaborada ideia da Superintendência. No mês de dezembro de 2015, lançamos o livro “Seguro de Riscos de Engenharia”. Dedicamos um capítulo sobre o projeto de circular; criticamos e divulgamos os retrocessos da Circular e abrimos mais uma vez espaço para dialogar sobre o aprimoramento das normas e práticas securitárias.
Ainda assim, do texto original pouco foi modificado. De nada serviram os questionamentos provenientes da consulta pública, espaço esse que, na teoria, poderia ser um importante instrumento para a democratização das decisões arbitrárias dos comandantes autárquicos.
O que poderia ser uma nobre atitude da autarquia federal, a publicação da norma, fenecida internamente desde antes do seu nascimento, transformou-se num vívido instrumento para depreciar ainda mais o conteúdo dos contratos de seguro de risco de engenharia e de responsabilidade civil na construção.
Dispondo sobre normas contratuais obrigatórias para a conformação do conteúdo dos contratos de seguro, a Circular deveria colocar-se à disposição de um projeto maior para o desenvolvimento das atividades construtivas essenciais ao desenvolvimento econômico e social do país, essenciais também num momento em que um dos setores mais estratégicos do país se afoga em uma crise sem precedentes.
Contrariamente, a Susep confirma a tendência estagnadora do desenvolvimento econômico brasileiro — abraça o sistema financeiro e distribui pontapés na atividade produtiva nacional. O Brasil segue acalentado pelos interesses casuais de certos resseguradores.
A Circular, no mesmo sentido que segue as atuações da autarquia, esvazia o conteúdo do contrato de seguro de riscos de engenharia.
Ao dizer que os prejuízos recairão sobre coisas e não sobre o patrimônio daquele que com as coisas se relaciona, a norma opta por uma concepção já rechaçada pela experiência jurídica internacional há mais de cem anos e pela nossa lei, que é a da coisificação do seguro. O legislador brasileiro já consolidou a teoria do interesse nos textos legais. Basta ver o artigo 757 do Código Civil. Não pode o ato administrativo contrariar aquilo disposto em lei e retornar a uma perspectiva já superada em todas as instâncias, sejam legais, doutrinárias ou judiciais. No caso específico das obras de construção civil, por exemplo, a perda de utilidade de uma “parte da obra” pode significar lesão integral ao interesse segurado.
Noutras ocasiões, a norma desconsidera a dinâmica dos sinistros complexos, próprios da engenharia, ao condicionar os prejuízos materiais ao período que compreende a obra, quando é comum que os prejuízos se tornem perceptíveis apenas após o término dela; ou ao utilizar a expressão “de forma permanente” e ignorar a existência de obras de apoio às principais, muitas vezes transitórias, e que trazem consigo interesses seguráveis bastante relevantes. Tais obras, indispensáveis à execução do projeto, com a Circular, também deixam de ser contempladas na cobertura básica, sendo facultada à seguradora a inclusão ou não dessa cobertura.
A autarquia também limita o conteúdo do contrato e parece desconhecer a dinâmica do seguro quando traz incompreensíveis limites temporais às coberturas, como ao abreviar o início da cobertura ao momento “após a descarga do material segurado no canteiro da obra” e ao reduzir seu término às restritas hipóteses determinadas, desmerecendo a unidade de risco intrínseca ao conjunto de atividades envolvendo o objeto segurado.
Novamente não só indo contra a lei, mas fazendo as vezes do Poder Legislativo, a Circular veda a renovação dos seguros de risco de engenharia, assunto que além de não ser de sua competência, viola os imperativos constitucionais da livre concorrência.
De forma infeliz dá continuidade ao padrão imposto pelo IRB em 2007, quando ainda monopolista do resseguro, prestes a concorrer no mercado livre, estabeleceu regras altamente restritivas para o seguro examinado, “legislando” em causa própria. A surpreendente Circular da SUSEP vem para enterrar de vez a boa prática do regime de prorrogação automática. Essa regra também destoa completamente das práticas observadas nos canteiros das obras de engenharia, que têm como uma de suas principais características a possibilidade de desencontro entre a realidade e o cronograma físico programado.
Não menos importantes foram as imposições sobre a equivocada mensuração do rateio; a delimitação de curtos prazos para o período de testes, que deveriam ser livres e adequados às características peculiares de cada empreendimento; a consolidação da errada prática das seguradoras em considerar o desentulho como atividade merecedora de cláusula adicional, restringindo, inclusive, a própria extensão da cobertura; a limitação quanto a quantidade e ao conteúdo das coberturas adicionais de responsabilidade civil, recobrando a imprópria e antiquada lógica da ideia do reembolso ao segurado, além de desconsiderar a responsabilidade do próprio construtor sobre os danos que ocorrem após o término de vigência do contrato de seguro; também restringe a reparação dos danos aos terceiros prejudicados ao escantear para a cobertura adicional as perdas financeiras, lucros cessantes, lucros esperados e “despesas emergentes”.
A intervenção estatal é necessária para garantir conteúdos mínimos convergentes com os objetivos republicanos. No entanto, à frente da atuação administrativa convivem os imperativos de ordem constitucional e infraconstitucional, os quais devem ser respeitados pelos órgãos administrativos, dentro dos limites de sua competência normativa e das leis que compõem o ordenamento jurídico brasileiro.
A atuação das autoridades brasileiras, corroborada pela presente Circular, confirma a preocupação de todos os protagonistas do mercado de seguros.
Um mercado inteiramente regulado por uma autarquia, que tem seus dirigentes escolhidos pela vontade política de autoridades administrativas, tende a gerar arbitrariedades inconciliáveis com um modelo de mercado organizado e adequado ao interesse dos seus agentes.
A concretização formal dos regramentos e práticas securitárias cabe ao Poder Legislativo, instância que possui, por sua própria natureza, a capacidade de dialogar com os diversos protagonistas do mercado de seguros e firmar as bases de uma superestrutura jurídica organizada.
A Circular Susep 540 de 2016 nasce contaminada de erros e ilegalidades. Cria regras que apenas poderiam ser editadas por quem possui o poder de legislar. Mais do que formalmente equivocada nos seus primórdios, a norma traz regras e conceitos que fazem involuir toda a prática securitária e desguarnece um setor já devastado pela crise econômica do país.
Fonte: http://www.conjur.com.br/2016-nov-02/normas-susep-pioram-destratado-seguro-riscos-engenharia