Mudanças de Bolsonaro para o trânsito são revés para luta contra epidemia de mortes no mundo
Alterações, que incluem fim da obrigatoriedade de cadeirinha para crianças, atacam diretamente três dos cinco pontos considerados essenciais pela OMS para a redução das mortes no trânsito.
Bolsonaro no dia 4, em Brasília. ADRIANO MACHADO REUTERS.
Um revés para o combate à epidemia de mortes no mundo. A proposta de alteração do Código de Trânsito Brasileiro do presidente Jair Bolsonaro (PSL), em conjunto com seus discursos contra o que chama de “indústria da multa”, poderiam ser definidos assim diante das recomendações globais sobre o tema. As mudanças pretendidas pelo presidente ultradireitista brasileiro atacam diretamente três dos cinco pontos considerados essenciais pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para reduzir este tipo de mortes: o excesso de velocidade, o uso de cadeirinha para crianças que são transportadas em automóveis e a utilização adequada de capacete por motociclistas. Estas alterações fazem parte de um projeto de Lei que revisa ao menos 13 pontos da legislação de trânsito brasileira enviado na última terça pelo presidente para a Câmara.
O combate às multas e o afrouxamento das regras, principalmente para caminhoneiros, fizeram parte da bandeira eleitoral de Bolsonaro. O tema é tratado por ele com tanta importância que o projeto com as alterações ganhou até o mesmo gesto simbólico dado à reforma da Previdência, vista como sua grande esperança para a retomada da economia: foi entregue pessoalmente ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Entre as medidas sugeridas pelo Governo estão o aumento do prazo de validade da carteira nacional de habilitação de cinco para dez anos (na maioria dos casos), a extinção da multa pelo não uso da cadeirinha para crianças com menos de sete anos e meio, o fim da realização de exames toxicológicos para caminhoneiros, a duplicação do limite de pontos para se ter a CNH suspensa (de 20 para 40) e a redução da gravidade da multa para quem pilotar uma moto usando capacete sem viseira ou óculos. Bolsonaro, aliás, já foi ele mesmo alvo desta última infração, enquanto guiava há pouco mais de um mês uma moto no Guarujá (litoral de São Paulo) com o capacete levantado.
Há oito anos, a OMS estipulou uma série de prioridades para diminuir a epidemia de mortes no trânsito no mundo. Os dados mostram que 1,35 milhão de pessoas foram vítimas de acidentes fatais em 2017. Além desses três pontos que são ignorados em todo ou em parte pela gestão federal, a entidade prevê o combate ao uso de bebidas alcoólicas enquanto se dirige e estimula o uso do cinto de segurança. Medidas essas que não foram confrontadas pelo Governo brasileiro.
Os dados do Datasus, sistema que compila informações sobre o Sistema Único de Saúde (SUS), mostram que a cada 15 minutos uma pessoa morre vítima de acidente de trânsito no Brasil. Em 2017, foram 36.429 mortes. Entre especialistas, a expectativa é que, caso prosperem as mudanças no Código de Trânsito Brasileiro propostas pelo presidente, esse número possa aumentar.
Na visão de estudiosos do assunto, a proposta do Governo não tem embasamento técnico necessário para ser aprovada pelo Legislativo. “Ainda que não se tenha uma ilegalidade manifesta pelo aspecto formal, podemos estar diante de uma iniciativa voluntariosa sem base técnica para sustentar mudanças radicais”, diz o advogado Wolf Ejzenberg, sócio do escritório ETAD.
Para o coordenador da iniciativa Bloomberg para a segurança global no trânsito e professor de direito da FGV, Pedro de Paula, o sistema de pontuação nas carteiras resulta na prevenção de acidentes e lesões. Com a mudança, corre-se o risco de haver uma falha nesse sistema no qual os mais ricos se sentiram com maior liberdade para cometer as infrações, já que raramente perderão o direito de dirigir, só pagarão multas. “Ao dobrar o tempo para a fiscalização da CNH você expõe a população mais tempo a risco por um período mais longo”. É uma medida especialmente problemática quando combinada com a realização exames toxicológicos para caminhoneiros a cada dez anos também”.
A extinção das multas para quem não transportar crianças em cadeirinhas —agora, só haveria uma advertência— é outra medida vista com restrição pelos especialistas. Há estudos que mostram que esses equipamentos reduzem em até 80% as chances das crianças de até sete anos morrerem em um acidente de trânsito.
Desde a campanha eleitoral no ano passado, Bolsonaro tem se demonstrado um adversário das atuais regras de trânsito. Diz que há uma indústria da multa no país e já determinou que o Ministério da Infraestrutura não renove os contratos dos radares de fiscalização de velocidade nas rodovias sob a responsabilidade da União.
Na quarta-feira, em evento na divisa de Mato Grosso com Goiás, o presidente fez um discurso efusivo no qual, mais uma vez, reclamou das multas em série e defendeu que os caminhoneiros têm o direito de perder sua carteira apenas ao atingir os 40 pontos em multas. Deixou claro, contudo, que sua ideia inicial era alargar ainda mais essa pontuação. “Por mim, eu botaria 60, que afinal de contas a indústria da multa vai deixar de existir no Brasil”.
De Paula diz que o radar é o melhor mecanismo que a há para fiscalizar velocidade e que retirada dele das rodovias seria reduzir a legitimidade da legislação. “É acabar com o potencial de fiscalização. Isso é dar um salvo-conduto para as infrações”.
O projeto ainda terá de passar por comissões do Legislativo para só então ser analisada em plenário. Sua aprovação depende de maioria simples em dois turnos de votação nas duas Casas. Em todo o Congresso, tramitam mais de 2.500 propostas de alterações do código de trânsito.
Texto: Afonso Benites
Fonte: El País