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Supremo Tribunal das Forças Armadas?

Por Gustavo de Medeiros Melo

Em artigo publicado há pouco mais de 10 anos1, manifestamos grande preocupação com uma decisão do CNJ que desfez acórdão transitado em julgado do plenário do TJ/RN, proferido em mandado de segurança, que havia assegurado a um magistrado o direito adquirido à percepção de seus proventos de acordo com a legislação da época de sua aposentadoria (CNJ, PCA 200910000026606, conselheiro Walter Nunes da Silva Júnior).

Na ocasião, o CNJ não só desconstituiu a decisão judicial colegiada definitiva como ainda determinou, num primeiro momento, a instauração de reclamação disciplinar contra a pessoa do desembargador que havia conhecido e concedido a segurança. O fundamento legal para tudo isso, acredite se quiser, era um dispositivo do regimento interno do conselho, hoje com equivalente conteúdo, que dizia: “As decisões judiciais que contrariarem as decisões do CNJ não produzirão efeitos em relação a estas, salvo se proferidas pelo STF” (art. 106).

Ali, nossa ideia foi apontar a semelhança que havia entre esse dispositivo do regimento interno e o ato institucional 5, baixado pelo General Costa e Silva em 13.12.68, ladeado pelo CSN – Conselho de Segurança Nacional, quando decretou, entre outras aberrações, excluídos “de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos” (AI-5/68, art. 10 e 11). Daí o trocadilho que fizemos no título do referido ensaio: “Conselho Nacional de Justiça ou Conselho de Segurança Nacional?”.

Daquela decisão do CNJ, como era esperado, saiu outro mandado de segurança diretamente para o STF, acusando ofensa às garantias básicas do devido processo constitucional. Nada na Constituição de 1988 autoriza um órgão administrativo a invadir a competência dos tribunais brasileiros para desfazer suas decisões judiciais de mérito, muito menos aquelas que se tornaram definitivas sob o manto da coisa julgada material (CF, art. 103-B).

O STF, porém, não lhe deu bolas. Em 27.04.10, a ministra Ellen Gracie, de cara, indeferiu o provimento liminar, abafando a discussão pelos cinco anos seguintes, até a nova relatora, ministra Rosa Weber, negar-lhe a segurança por decisão monocrática de 30.04.15. Aprovou-se a intervenção do CNJ sob a justificativa de que, sendo um “terceiro” que não integrou a relação processual daquele primeiro mandado de segurança, o Conselho não estava vinculado à autoridade da coisa julgada formada no acórdão do TJ/RN (MS 28.691-RN).

No fundo, se havia ali alguma ameaça, não era à competência do STF. Afinal, apenas um mandado de segurança individual, apenas um magistrado aposentado e apenas um pequeno tribunal de justiça de um distante Estado da federação, nada que justificasse algum esforço de reflexão pela Corte Suprema.

Triste subestimação. Muitas vezes uma discreta trinca nas bases do edifício, aparentemente irrelevante, pode custar muito caro para todos que nele habitam. Uma década depois daquele episódio, assiste-se hoje a algo muito mais ameaçador aos pilares do Estado Democrático de Direito. Dessa vez, a vítima direta é o próprio STF.

O atual presidente da República, dia sim, dia não, vem alardeando em praça pública, nas redes sociais, no cercadinho a céu aberto do Palácio da Alvorada e até mesmo em documento oficial da Presidência, que não vai cumprir determinadas decisões do STF antes mesmo de serem proferidas. Pior: não só prenuncia a desobediência como ainda ameaça convocar as Forças Armadas (Exército, Marinha, Aeronáutica) para “fazer cumprir a Constituição a qualquer preço”, entre outras frases de efeito subliminar.

Tais fatos geram preocupação em grau máximo e múltiplas interrogações a quem tem um mínimo de sensibilidade pelo valor da democracia. Afinal, o que poderia significar “cumprir a Constituição”? Existe recurso da decisão do Supremo para outra instância superior? Se não existe recurso na esfera do processo judicial para uma instância acima do Supremo, haveria então uma ação que nós operadores do sistema judiciário ainda não conhecemos? Seria alguma espécie de “reclamação constitucional”, similar à que existe no STF (CF, art. 102, I, “l”), para assegurar a autoridade das Forças Armadas? Se não for uma reclamação, que tem natureza de ação judicial, seria algum tipo de correição parcial administrativo-disciplinar contra o ministro da Corte? O art. 142 da Constituição autoriza o presidente da República a convocar as Forças Armadas para “corrigir” ato jurisdicional do guardião da Constituição?

Embalando um pouco mais na paranoia desse raciocínio em espiral, como se daria o cumprimento dessa medida? Uma vez convocadas as Forças Armadas por ato do presidente da República, que tipo de eficácia teria essa intervenção? Mandamental, desconstitutiva ou seria ela já propriamente executiva? O órgão operacional ativado pelo ministro da Defesa aprecia o mérito da decisão e, se a considerar ilegal, notifica o Tribunal para suspender ou desfazer o ato impugnado? Se acaso não houver suspensão ou desfazimento do ato pelo Tribunal no prazo assinalado, o presidente da República pode baixar um “decreto” desconstituindo a decisão judicial? Se o Supremo não reconhecer a juridicidade desse “decreto”, vai aparecer um jipe do Exército, um tanque Urutu ou comboio do tipo estacionado em frente ao STF? Finalmente, se nada acontecer, haverá intervenção militar nas dependências da Suprema Corte?

Observe-se que um simples exercício de imaginação é suficiente para mostrar a insanidade e o cenário catastrófico que pode gerar a leitura de quem enxerga no art. 142 da Carta Magna uma espécie de “Poder Moderador” atribuído às Forças Armadas para restabelecer a normalidade, sob o falso consolo de se tratar de remédio apenas “pontual” e “episódico”.

Uma completa subversão da ordem jurídica constitucional. Por mais controvertido que seja o tema, por mais discutível que seja o critério interpretativo aplicado, por mais antipático que seja o estilo pessoal do magistrado, a Constituição de 1988 conferiu ao STF o posto de guardião da Carta Magna, a última palavra sobre a constitucionalidade dos atos do Poder Executivo e do Parlamento. Isso não transfere ao STF o dom da infalibilidade, mas apenas a prerrogativa de eventualmente errar por último. A jurisdição constitucional fundada na supremacia da Constituição – lembra Peter Häberle – é o standard atual de desenvolvimento do Estado Constitucional.2

Se o art. 142 prescreve que as Forças Armadas estão submetidas à autoridade suprema do Presidente da República (CF, art. 84, XIII), a mesma Constituição estabelece que o presidente da República tem o compromisso de defender e cumprir a Constituição cujo intérprete máximo é o Supremo Tribunal Federal (CF, art. 78 e 102). Essa mesma Constituição tipifica como crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (CF, art. 5º, XLIV), e crime de responsabilidade o ato do Presidente que atente contra o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e do Ministério Público, e contra o cumprimento das leis e decisões judiciais (CF, art. 85, II e VII).

Portanto, não adianta querer dar voltas no texto, porque ele termina dando a volta em você. A Carta de 1988 não fala que o STF, composto de 11 ministros de notável saber jurídico e reputação ilibada, está submetido à autoridade suprema das Forças Armadas. Também não está nas entrelinhas do texto constitucional esse fantasma do Poder Moderador que a Constituição de 1824 outorgava ao Imperador como chefe supremo da nação, pessoa inviolável, sagrada e imune a qualquer responsabilidade (CF/24, art. 98 e 99), tão intocável que poderia até dissolver a câmara dos Deputados e suspender os magistrados (CF/24, art. 101, V e VII).

Os tempos são outros. O art. 142 da Carta de 1988 está situado em título chamado “Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas”. Ali se diz que as Forças Armadas se destinam à defesa da Pátria (ameaça externa) e à garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem. As três Forças, assinalou o ministro Luiz Fux, são instituições permanentes para “defesa das instituições democráticas contra ameaças de golpe, sublevação armada ou movimentos desse tipo” (STF, ADI 6.457). O ministro Luís Roberto Barroso, em outra sede, colocou que as três Forças não são órgãos de governo, mas “instituições de Estado, neutras e imparciais, a serviço da Pátria, da democracia, da Constituição, de todos os Poderes e do povo brasileiro” (STF, MI 7.311).

Seu âmbito de atuação é vastíssimo, desde a proteção das faixas de fronteira terrestre, dos espaços aéreo e marítimo, às missões de paz desempenhadas em regiões inóspitas do território nacional, em terras indígenas, unidades federais de conservação ambiental, no campo da saúde pública, da engenharia rodoviária, nos processos eleitorais, na organização de grandes eventos mundiais (Jogos Olímpicos e Paraolímpicos do Rio de Janeiro) etc.

A GLO – Garantia da Lei e da Ordem, por sua vez, não tem nada a ver com essa crise política que se instalou no Brasil. A GLO é restrita à preservação da ordem pública interna e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, acionável somente de forma subsidiária, quando os órgãos de segurança pública (polícias federal, rodoviária federal, ferroviária federal, civis e militares, corpo de bombeiro militar e polícia penal) se mostrarem indisponíveis, inexistentes ou insuficientes ao desempenho regular de sua missão constitucional (LC 97/99, art. 15, §§ 2º e 3º).

Miguel Seabra Fagundes, referindo-se às Forças Armadas sob a Carta de 1946, dizia que “Se a elas o Estado confere o monopólio da força material, se lhes entrega a defesa da sua própria sobrevivência e da tranquilidade dos seus habitantes, se somente as chama a intervir nos momentos cruciais da vida coletiva abalada pela agressão exterior ou pela violência interna, é óbvio que se impõe criar, em correlação com tais circunstâncias, rigorosos elementos de subordinação à lei”.3

Por outro lado, não se quer dizer com isso que o STF esteja funcionando a mil maravilhas. Não está. Porém, trata-se de colegiado com 11 ministros cujas sessões estão expostas aos olhos do Ministério Público, da imprensa, do povo brasileiro e da comunidade internacional. Seu sistema recursal é amplo para corrigir ou minimizar eventual excesso monocrático de seus integrantes. Além disso, uma boa reforma constitucional pode remodelar sua estrutura como Corte Constitucional, passando a ter critérios mais democráticos de recrutamento de seus juízes, composição heterogênea, mandato temporário e competência diferenciada. Há espaço para muitas ideias no jogo democrático. O que não se pode admitir é intimidação, agressão e ameaça de fechamento.

O cenário está obscuro e bastante desconfortável a exigir serenidade e vigilância de todos. A entidade permanente de defesa do Estado Constitucional não pode ser instrumento de manipulação do extremismo ideológico, seja de direita, seja de esquerda. Esperamos que o Congresso Nacional, o Poder Judiciário, o Ministério Público, as Forças Armadas, a imprensa livre e independente e as instituições democráticas da sociedade civil organizada fiquem bem atentos para não deixar ruir esse edifício que custou tão caro ao povo brasileiro.

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1 Clique aqui.

2 HÄBERLE, Peter. Conversas acadêmicas com Peter Häberle. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 2 e 9.

3 SEABRA FAGUNDES, Miguel. As Forças Armadas na Constituição, RDA, nº 9, 1947, p. 8.