Seguro de Vida e Seguro Saúde em tempos de COVID-19: os riscos pertinentes estão cobertos?
Ana Maria Blanco
O cenário atual ocasionado por COVID-19 se constitui em algo fora do esperado. Não se pode dizer que tenha sido imprevisível em absoluto dadas outras epidemias vivenciadas precedentemente, mas não há dúvida de suas improváveis e nefastas consequências se tivermos como referência, por exemplo, o “surto” epidemiológico H1N1 de alguns anos atrás. O mundo não viveu, naquela ocasião, com tanta severidade o alastramento do vírus e, em proporção tão expressiva, as consequências mais graves que hoje sofremos. A patologia COVID-19 extravasou as expectativas de demanda da saúde pública tomada em conta pela quase totalidade dos países e isso fica absolutamente claro em âmbito mundial. Na Itália, a lentidão na adoção de medidas de isolamento, pela subestimação da disseminação e da letalidade do vírus, apenas piorou o cenário que é em si alarmante.
O Brasil, por sua vez, apesar de iniciado o isolamento social, se vê numa discussão estéril sobre a solução mais adequada ao suposto antagonismo saúde versus economia. Pensar que existe um tal antagonismo significa reconhecer que lidamos com temas de valor equivalente em relação à vida humana e à sociedade. É possível que alguns pensem que a economia, ao propiciar a subsistência humana, tem o mesmo valor e possa, por isso, justificar a defesa da continuidade das atividades econômicas nesse período crítico. Todavia, em última análise esse argumento apenas reforça o fato de não se tratar de um antagonismo, mas da convergência da economia à preservação da vida humana. E, nesse sentido, não há uma relação de equivalência de valores, mas de instrumentalidade. Ora, pela lógica desse argumento – economia garante vida humana – a economia serve à vida humana. Dito isso, é de se desejar que o argumento seja consequente e, então, espera-se que a economia sirva à vida humana efetivamente.
Enquanto medidas políticas macroeconômicas são pensadas – queremos crer que o sejam seriamente e de forma instrumentalmente coordenada em prol da questão sanitária e de vidas humanas –, há na escala micro uma série de questões que se colocam no plano jurídico com imediata repercussão na esfera econômica e que, concernente aos contratos, podem fazer a diferença na subsistência das pessoas e das empresas.
Inevitável pensar acerca da pertinência da manutenção do vínculo contratual ou, ao menos, seus termos inicialmente ajustados. Nesse sentido, de um lado está endereçado o questionamento se, dada a concretude contratual, é o caso de resolução por impossibilidade de cumprimento definitiva ou temporária, ou hipótese de caso fortuito ou foça maior. Ou se se trata de resolução por onerosidade excessiva, nos termos do art. 478, CC. Pode-se perguntar, também, se é o caso de revisão e sob qual fundamento (art. 317 ou 479, CC, ou, em se tratando de relação de consumo, consoante a legislação específica). De outro lado há, justamente em razão do quadro que vivemos, a imperiosa necessidade de cumprir contratos, fazendo valer sua força obrigatória nos termos originais e em vista de sua funcionalidade. É, com certeza, o caso dos contratos que têm como finalidade precípua prover garantia ou segurança em situações de falha. É o caso do seguro. E, sendo a vida humana o bem jurídico prioritário em qualquer circunstância, ganham relevância as questões pertinentes aos seguros de vida e saúde e por isso se coloca como indagação central a seguinte: a morte ou a convalescença por COVID-19 está coberta pelo seguro de vida ou pelo seguro saúde?
Em matéria de seguro, a determinação do risco é de fundamental importância. No que diz respeito ao risco morte ou saúde não se trata apenas de estabelecer se está ou não coberto o risco, mas em que circunstâncias. Exemplo claro é a morte decorrente de suicídio, a qual não está coberta se verificada nas circunstâncias contidas no art. 798, CC, isto é, suicídio ocorrido nos dois primeiros anos do asseguramento. Outro exemplo atinente ao seguro saúde diz respeito às complicações de saúde decorrente de doença preexistente. Portanto, qualquer contrato de seguro de vida ou de saúde requer a especificação de circunstâncias nas quais o risco tomado pelo segurador está coberto ou excluído, sendo imperiosa a regra segundo a qual as cláusulas contratuais serão interpretadas em favor do segurado ou beneficiário e cabe à seguradora o ônus de provar a má-fé ou a reticência do contratante do seguro porventura oponível ao segurado, assim como a incidência de qualquer exclusão válida ao caso concreto.
No que diz respeito ao seguro saúde, a ANS, por meio de sua Resolução Normativa 428/2017, atualizou o rol de procedimentos e eventos em saúde, que constitui a referência básica para cobertura assistencial mínima nos planos privados de assistência à saúde, contratados a partir de 1º de janeiro de 1999, e regulamentou o art. 10 da Lei 9.656/98. No rol das exclusões permitidas para o plano referência não consta epidemia, mas “cataclismos, guerras e comoções internas, quando declarados pela autoridade competente” dentre outras hipóteses. Em relação ao plano ambulatorial e ao plano hospitalar essa também não é uma exclusão prevista. Recentemente a ANS promulgou a Resolução Normativa 453, de 12 de março do ano corrente, alterando a Resolução 428/2017 em seus Anexos I e II, instituindo a cobertura do teste para SARS-CoV-2 (Coronavírus COVID-19) – pesquisa por RT – PCR. Em sua nota de esclarecimento a respeito da Resolução 453, a ANS ressalta que “a cobertura do tratamento aos pacientes diagnosticados com o Covid-19 já é assegurada aos beneficiários de planos de saúde, de acordo com a segmentação de seus planos”. A exclusão admitida pelo órgão regulador é a internação hospitalar, conforme a modalidade de plano contratado.
Não fosse essa a orientação da ANS diante de situações de epidemia, precedentes do STJ envolvendo o vírus H1N1 já apontavam para a cobertura durante o prazo de carência (AREsp 1.279.022/RS e AREsp 768.067/SP, AREsp 674.926/SP) ou no caso da internação e tratamento de urgência por não credenciados (REsp 1.708.614/MG).
Quanto ao seguro de vida, no âmbito regulatório, as disposições da Circular SUSEP 302/2005 relativa ao seguro de pessoas de modo geral, deixa claro que o uso da denominação seguro de vida “está condicionado ao oferecimento da cobertura de morte por causas naturais e acidentais”. Além disso, determina a inserção, já nas condições gerais e/ou especiais, de “todas as coberturas incluídas no plano de seguro, com a especificação dos riscos cobertos”, seguidas das exclusões específicas (art. 56). E como preceitua a Resolução CNSP 117/2004, que fixa as diretrizes gerais dos seguros de pessoa, o conteúdo de disposição das condições gerais e/ou especiais que limita direito do segurado, beneficiário ou assistido, há de ser redigido “em destaque, ou seja, com a utilização de tipo gráfico distinto das demais disposições contratuais, e em linguagem de fácil compreensão, permitindo seu imediato e amplo entendimento” (art. 60).
Admitindo-se, por hipótese, cláusula no âmbito de seguro de pessoas que exclua o risco morte sob as circunstâncias de epidemia ou pandemia, a exclusão haveria de obedecer às normas regulatórias e, à toda evidência, a legislação civil e as regras especiais regentes das relações de consumo aplicáveis, nomeadamente os arts. 757, 765, CC, e arts. 6º, III e IV, 30, 46, 47 e 54, sem prejuízo de eventual configuração de nulidade de cláusula, consoante art. 51, estes todos do CDC.
Tome-se o exemplo do AREsp 773.224/SP, julgado pelo STJ, sobre cláusula que excluía cobertura na hipótese de epidemia e pandemia. O caso versou sobre seguro prestamista relacionado ao financiamento de um veículo, cuja segurada veio a óbito em razão das complicações decorrentes do vírus H1N1 contraído. É sabidamente controversa a natureza de tal contrato, se classificável como seguro de pessoa ou de dano. Independente disso, havia cláusula específica na apólice excluindo a cobertura por “”epidemias e pandemias declaradas pelo órgão competente, incluindo gripe aviária, febre aftosa, malária, dengue, meningite, dentre outras, mas não se limitando a elas”, o que motivou a negativa por parte da seguradora. No entanto, a decisão proferida pelas instâncias inferiores e mantida pela Corte Superior reconheceu que a cobertura não especificava o evento morte, além de que, ao tempo da verificação do sinistro, não havia epidemia declarada por órgão competente, garantindo-se, com isso, a cobertura contratada.
A Circular SUSEP 440/2012, pertinente aos chamados microsseguros, prevê no art. 12, I, para o microsseguro de pessoas, a possibilidade de exclusão de cobertura dos riscos de “epidemia ou pandemia declarada por órgão competente”. Além de toda a crítica cabível aos microsseguros de modo geral, que parecem gerar “microssegurados”, “microcidadãos” e “micro-direitos”, essa disposição traz à baila alguns pontos, além dos levantados.
Em primeiro lugar, não há de se admitir uma exclusão genérica sem especificação sequer da classe de patologia geradora de um estado de epidemia/pandemia sob pena de contrariar as normativas supra que impõem uma especificação do risco. Em segundo lugar, admitindo-se ainda por hipótese a exclusão, impõe-se, em um caso concreto, a verificação do nexo causal exclusivo entre a patologia geradora da epidemia/pandemia e o resultado morte. Pensemos na COVID-19: como se sabe, essa patologia tem efeitos mais devastadores e expressivos junto às pessoas de avançada idade e com fatores de ameaça à vida pré-existentes. Além disso, o motivo determinante do isolamento social, medida que tem se mostrado acertada, é o risco de colapso do sistema de saúde público e privado. Nesse cenário, de um lado, é possível que o óbito não seja direta e exclusivamente decorrente da patologia contraída que pode ser uma concausa de outros fatores pré-existentes em relação aos quais a seguradora já assumira o risco. Um sinistro com concausa coberta pelo seguro é um sinistro coberto.
De outro lado, também é possível que o óbito se dê pela não adoção das medidas médico-hospitalares cabíveis em razão de o sistema de saúde já estar em colapso.
Há, ainda, um terceiro aspecto: proporcionalmente, a demanda por testagem e tratamento em razão da COVID-19 é muito expressiva se comparado com o número de óbitos. A despeito disso, a ANS instituiu a obrigatoriedade de testagem, além de que o tratamento já está abrangido pelo seguro de saúde, ressalvada a internação conforme a modalidade de plano. Ora, se mesmo diante de uma expressiva recorrência de casos, o seguro saúde ainda é viável, com muito mais razão continua sendo viável o seguro de vida, não se podendo presumir insuportável acréscimo de sinistralidade ou desequilíbrio atuarial.
Praticamente todas as seguradoras de vida de primeira linha, com atuação mundial, como a espanhola Mapfre e a norte-americana Prudential, ou nacional, como a MAG e a Icatu, vieram a público reconhecer que apesar da exclusão constante de suas apólices padronizadas, consideravam devidas as indenizações por sinistros que tenham como causa a COVID-19, ainda que única e direta. Recentemente, também a Caixa Seguradora adotou mesma postura. Lamentavelmente o exemplo não foi seguido até agora pela BB Seguridade, uma das maiores beneficiárias do negócio de seguro de vida do país e que tem um universo imenso de segurados.
Não se trata de ação de caridade, a qual, acaso fosse empreendida, eventualmente poderia caracterizar gerenciamento ilícito e expor os administradores das seguradoras a penalidades administrativa e ao risco de serem considerados responsáveis pelo reembolso das quantias pagas injustificadamente.
Para compreender esse posicionamento uníssono do mercado segurador brasileiro – e mundial – , é necessário ter em conta que as exclusões não podem ser aleatórias, exigindo uma razão técnica, bem como atentar que a simples classificação de uma doença como pandemia, por si, não muda a natureza técnica dos sinistros, apenas enfatiza o espaço territorial de sua incidência.
É preciso ter em perspectiva a finalidade do seguro de modo geral, a “constituição econômica do mundo moderno” de que falava Ascarelli, eminente jurista italiano, instituto capaz de prover a segurança econômica frente aos infortúnios da vida, subtraindo do indivíduo os riscos ou os seus efeitos sobre sua subsistência ou de seus beneficiários.
Para cumprir tal missão, a atividade securitária, que tem como risco inerente a concentração de prejuízos, promove a dispersão dos riscos diante de fatores de desnivelamento do sistema securitário, amparada ainda pelo resseguro e pela retrocessão. Não é dádiva e nem mágica, é técnica. E se a técnica é mal aplicada, com mais razão o segurado e/ou seus beneficiários merecem ser respaldados.
[1] Advogada, mestre em direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, doutora em direito pela Universidade de São Paulo – USP, membro do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro – IBDS. [2] Advogado, doutor em Direito pela Universidade de São Paulo – USP e presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro – IBDS.Texto: Ana Maria Blanco e Ernesto Tzirulnik