Os seguros, a crise e o coronavírus
Há muita expectativa dos contratantes de seguro quanto à cobertura dos sinistros causados pela covid-19. Apesar de dramática pela facilidade com que é transmitida e a velocidade com que pode contribuir ou evoluir para a morte dos infectados, a doença, quando avaliada sob a perspectiva dos seguradores e resseguradores, não é financeiramente catastrófica.
No entanto, a covid-19 é certamente uma circunstância que agravará a crise econômica, principalmente a brasileira.
O liberalismo financista, vitorioso nas últimas eleições, se propunha a combater a crise e retomar o crescimento com a redução do Estado. Para isso, vinha cortando os orçamentos da educação pública e da saúde, recolhendo na cesta do Tesouro os mais diversos fundos, como o do DPVAT e o da Agência Brasileira Gestora de Fundos Garantidores e Garantias S.A., dando ainda mais liberdade ao fluxo financeiro internacional, e vendendo ativos públicos para o entesouramento do Estado e o pagamento dos juros da dívida pública. De resto, os mercados funcionariam livremente, autorregulando-se, e o mundo seria outro. Quem diria? Um vírus a mais na fragilizada praça derrubou o programa todo. A sociedade será outra, depois da pandemia que afetará a todos e matará muito mais os necessitados.
Mas, tudo isso também está provocando uma grande transformação. O mundo passou a ter um só fuso horário. Sairá amadurecido e lembrado de que a comunidade organizada é quem protege os indivíduos e não a desarticulação ordenada.
Diversos países, faltando-lhes estruturas de saúde pública e privada capazes de prevenir contágios e atender massivamente aos que apresentarem sintomas graves, porque essas estruturas já estão esgotadas com a demanda cotidiana, fizeram as contas e decidiram remontar a toque de caixa as políticas sanitária e de saúde.
Isso implica não apenas retomar os investimentos para a construção de hospitais e aquisição de materiais e equipamentos necessários para conter a crise hospitalar. No curto prazo, o combate ao vírus que se somou sem que houvesse a abdução das demais doenças e outras fatalidades, também exige o distanciamento social.
Essas medidas terão impactos nos negócios em geral, acelerando sua infortunística e a consequente necessidade de utilização dos seguros para a reposição das forças produtivas afetadas.
A casuística é imensa. Pessoas morrerão pelo agravamento de outras moléstias em razão da covid-19 e outras, ainda que poucas no contexto geral, morrerão porque contraíram o coronavírus. Ao mesmo tempo, incêndios irromperão ou propagarão porque a ação preventiva perderá eficiência nas empresas que, afinal, tiveram de dispensar seus empregados para tornar possível o isolamento social. Cargas apodrecerão em razão da deficiência dos sistemas de refrigeração com manutenções restringidas, ou pela falta de prioridade para a logística do seu transporte. Com o fechamento universal e compulsório dos estabelecimentos comerciais, industriais e de serviços que exigem número inconveniente de pessoas no mesmo ambiente, muitos acabarão se vendo privados de suas receitas e salários.
O resultado disso tudo é que haverá acúmulo de falhas na execução dos mais diversos tipos de contrato, um sem número de inadimplementos obrigacionais, assim como será reduzida ou desaparecerá a lucratividade de praticamente todos os negócios. Haverá os contrairão o coronavírus em razão da atividade que exercem ou é exercida por aqueles com quem convivem, como os profissionais da saúde, outros servidores da linha de frente do combate à epidemia, entregadores etc., porque não se puderam valer do isolamento social. Se alguns poucos serviços serão estimulados e nichos de negócio prosperarão, a maior parte das atividades econômicas despencará.
Os seguros, nessa preocupante circunstância, serão chamados para que cumpram sua função econômica precípua de socorro aos segurados, beneficiários e vítimas dos acidentes em geral. Na linha de frente do combate se encontram o seguro de vida, os seguros operacionais, de lucros cessantes, de crédito e fidejussórios em geral, não apenas as garantias de grandes contratos como também as fianças locatícias de unidades habitacionais. Enfim, até nas coberturas de quebra de máquina será possível especular a participação da notória pandemia, não como causa, mas como fato que favorece indiretamente o aumento da infortunística.
Ainda que se possa reclamar da falta de atuação da Superintendência de Seguros Privados (Susep), o mercado ressente-se pela falta de manifestação em bloco do setor segurador e ressegurador, assim como dos intermediários de seguros e resseguros, o que se esperaria da confederação e federações que representam cada quais. Mas os potenciais devedores sempre têm dificuldade de encontrar a unanimidade em prol do pagamento.
Ao contrário da Susep, a ANS – Agência Nacional de Saúde, bem ou mal, mostrou a cara em público para incluir o exame de detecção no rol de procedimentos e eventos em saúde como cobertura mínima obrigatória.
Algumas seguradoras também passaram a reconhecer que existe a cobertura dos riscos assegurados nas suas apólices, mesmo que associados à pandemia, e que, portanto, são devidas as indenizações pelos sinistros que vierem a ocorrer.
Entre essas seguradoras, uma que havia inserido nas suas apólices a exclusão expressa dos riscos inerentes a pandemias, reconheceu publicamente que fará os pagamentos dos capitais e indenizações por mera liberalidade: “Mesmo não tendo a obrigação legal, pagaremos as indenizações” (Valor Econômico, 23/3/2020, Seguradora vai indenizar morte por coronavírus). Segundo essa mesma matéria jornalística, outra seguradora de grande expressão informou que está se ajustando com suas resseguradoras para deixar claro a todos os seus clientes que todas suas apólices cobrem os sinistros associados à pandemia.
O pagamento por mera liberalidade é argumento inverossímil porque constituiria ato ilícito ou seria o reconhecimento de que os prêmios são cobrados em demasia dos clientes. Certamente, não se trata de caridade o reconhecimento pelas seguradoras da cobertura dos riscos associados à pandemia. Isso é mesmo algo impensável para uma seguradora e constituiria falta gravíssima dos seus gestores.
Some-se a isso tudo que as taxas para os cálculos dos prêmios cobrados pelas seguradoras envolvidas na mencionada matéria jornalística são praticamente as mesmas, nada justificando uma garantir e a outra não garantir o risco associado à pandemia.
Algumas corretoras de seguros e resseguros têm esclarecido aos clientes que lhes consultam que não haverá problema de cobertura dos riscos assegurados, a menos que os sinistros reclamados decorram da tomada de decisões arbitrárias e injustificáveis por parte dos segurados. Afinal, o dano que é voluntariamente causado pelo segurado, sem justificativa suficiente, não pode ter cobertura em seguro.
Como se pode facilmente intuir, marketing à parte, é bem outra a razão desses reconhecimentos de cobertura. A razão é jurídica.
Todos sabemos que o seguro é formados por meio de adesão do cliente da seguradora a um texto essencialmente padronizado. Não é contrato redigido a quatro mãos pelas partes. As relações obrigacionais securitárias, na verdade, nascem antes mesmo da emissão das respectivas apólices pela seguradora, quando os segurados sequer têm conhecimento de como serão escritas as cláusulas. Os clausulados das apólices, invariavelmente, refiram-se a seguros de vulto ou a seguros ordinários, são escritos e padronizados pela seguradora, quando não impostos pelas suas resseguradoras, ou mesmo pelas chamadas retrocessionárias, as garantidoras das resseguradoras.
Por isso, os conteúdos dos contratos de seguro estão sujeitos ao regime de proteção do Código de Defesa do Consumidor, o qual reputa exagerada e nula de pleno direito a cláusula que restrinja direito ou obrigação essencial e inerente à natureza do contrato (art. 51, § 1º, II). Certamente, restrições à cobertura podem ser feitas quando se tratar de seguro celebrado com pessoa jurídica, mas desde que essas limitações sejam realmente justificáveis (art. 51, I). Uma gripe que desafia o precário sistema de assistência à saúde não é justificativa para retirar a cobertura de qualquer seguro.
Aos que ainda se permitem acreditar num pretenso paritarismo dos seguros empresariais, vale lembrar que o nosso ordenamento civil de incidência indistinta, que rege a todas as relações obrigacionais privadas, veda a inclusão nos instrumentos contratuais das cláusulas e condições que “privarem de todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes” (Art. 122, Código Civil). Excluir dos seguros de saúde ou de vida a morte por causa de uma gripe é algo impensável!
Finalmente, cabe também observar que nos contratos de execução continuada, como o seguro, a revisão e a resolução somente serão admissíveis “se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra”. A ocorrência de sinistros, ainda que concentrada no tempo e simultânea em diversos países (pandemia), não caracteriza a onerosidade excessiva, nem sua garantia atribui vantagem excessiva aos segurados.
Esse asseguramento não ofende a ordem pública, nem traz para as seguradoras desconforto algum, excetuada aquela seguradora que porventura tenha deixado de proteger-se mediante a contratação de plano de resseguro adequados para a superação dos desvios atuariais. Não há onerosidade excessiva, nem vantagem extrema para as partes.
Se a sinistralidade da seguradora aumenta com a pandemia, ela também pode aumentar, ainda mais exponencialmente, por exemplo, quando cai a aeronave que determinada assegurou quanto aos riscos de casco e responsabilidade, transportando passageiros também assegurados pela mesma companhia. Essa concentração de prejuízos é risco intrínseco da atividade seguradora e justamente para protegê-la é que são contratados os resseguros, como lembra um dos principais juristas franceses, o professor Luc Mayaux da Universidade de Lyon II, diretor do Instituto de Seguros de Lyon, em artigo recente intitulado “Coronavirus et assurance” (LexisNexis, La semaine Juridique, ed. general nº 11, 16.03.2020, pp. 506-7).
Se a seguradora contratou mal o resseguro, a falta é profissional dela, caso de má prática de gestão da política de solvência, e não o resultado de fato cujos efeitos são irresistíveis.
Se é assim no plano dos seguros de vida, nos seguros de danos a cobertura é ainda mais evidente. Tenhamos como exemplo os seguros de fiança locatícia, onde a causa do sinistro, o inadimplemento pelo afiançado, não será o fato da pandemia, e sim a incapacidade econômica e financeira do devedor afiançado. Se isso, em determinadas situações, justificar a liberação de multas por atraso, no plano do seguro não pode repercutir a fim de isentar a seguradora da responsabilidade pela indenização devida ao seu segurado locador em razão do não pagamento do aluguel e demais encargos.
As medidas de governo (políticas de crédito, trabalhistas, comerciais, cambiais etc.) sempre acabam gerando resultados no plano das relações obrigacionais, públicas ou privadas, sem repercutir diretamente no âmbito das relações negociais. A eventual prefixação do preço da carne abaixo do praticado não autoriza o pecuarista a deixar de pagar pela terra arrendada para a criação, assim como a proibição de comercialização de um determinado produto não libera seu fabricante de pagar aos fornecedores de insumos e de arcar com quaisquer outras de suas obrigações, exceto, é claro, a de fornecimento do produto proibido.
Pelo andar da nossa carruagem, não há qualquer perspectiva de inversões excepcionais de recursos, públicos e privados, para reduzir a crise econômica e apoiar a retomada do crescimento. Além disso, o governo parece mais interessado em ampliar a redução dos direitos dos trabalhadores do que em garantir-lhes os empregos. Os sinistros sucederão e os sistemas de seguro e resseguro terão a sua própria saúde avaliada pela sociedade brasileira.
As omissões e as ações governamentais não justificam a extinção das garantias de seguro, que se espera lastreadas pela Estatística e pela Atuária, e bem protegidas por meio de programas de resseguro adequados.
*Ernesto Tzirulnik, doutor em Direito pela Universidade de São Paulo – USP e presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro – IBDS