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Comentários à proposta SUSEP de sandbox regulatória para o mercado de seguros

Conteúdo flerta com disfuncionalidade ao ponto de ameaçar sucesso dos objetivos imposto ao CNSP e à SUSEP.

Crédito da imagem: Pixabay

Recentemente, a Superintendência de Seguros Privados (Susep) publicou os Editais de Consulta Pública nº 09/2019 e nº 10/2019, para que os interessados pudessem encaminhar seus comentários e sugestões à autarquia a respeito das minutas de resolução do Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) e circular da Susep, ambas a dispor sobre a sandbox securitária brasileira. Quando publicada, a resolução será o ato administrativo de referência de política regulatória a orientar a estruturação da sandbox no âmbito do projeto Inovação/Susep, ao passo que a circular será o principal instrumento normativo a disciplinar as regras de seleção, de participação e de conclusão do projeto.

Sandbox e a minuta de Resolução CNSP

A minuta de Resolução do CNSP apresentada pela Susep ao público está estruturada em seis capítulos: O capítulo I, compreende os artigos 1º e 2 e, delimita o âmbito e finalidade da resolução; o capítulo II, referente aos artigos 3º ao 6º, dispõe sobre o processo seletivo ao projeto Inovação/Susep, respectivamente: edital de participação, critérios de elegibilidade e requisitos formais. O capítulo III, relativo aos artigos 7º ao 9º, trata da autorização temporária para ingresso na sandbox. O capítulo IV, compreendendo os artigos 10 a 17, regula o “funcionamento” do projeto e os termos da participação das sociedades seguradoras eleitas”. No capítulo V, entre os artigos 18 a 23, se verifica a disciplina do cancelamento e do encerramento da autorização temporária. Por fim, no capítulo VI, relativos aos artigos 24 a 30, encontram-se as disposições finais.

As primeiras questões quanto à minuta de resolução se colocam no capítulo II, que em seu artigo 4º, parágrafo único, dispõe que a “publicação do edital de participação mencionado no caput não gera direito adquirido a quaisquer dos participantes ou interessados, podendo a Susep suspendê-lo a qualquer tempo”. A atribuição de irrestrita discricionariedade à Superintendência para suspender o edital a qualquer tempo é de difícil aplicação, pois não é possível excluir de antemão a hipótese de que, no momento que a superintendência opte pela suspensão do edital, os participantes já tenham experimentado efeitos jurídicos decorrentes da sua breve participação no projeto.

Ao invés de adotar a expressão “a qualquer tempo”, a resolução poderia detalhar o procedimento para a suspensão, melhor explicitando quando e de que maneira deveria vir a ser decidida a suspensão do edital – detalhamento que contribuiria para a harmonia do futuro ato administrativo aos preceitos consagrados pelo direito administrativo cogente.

Em seguida, o artigo 5º elenca os “critérios de elegibilidade” dos interessados em participar do projeto Inovação/Susep, entre os quais está a apresentação do “plano de negócios”. O conteúdo do mencionado plano de negócios, contudo, não é detalhado na minuta de resolução, e tampouco na minuta de circular. Esta carência deve ser saneada, sob pena de a norma regulamentar chancelar excessiva discricionariedade, quiçá arbitrariedade, ao regulador.

Além disso, entre os critérios de elegibilidade listados, e com mais razão no subitem “planejamento para saída do projeto”, seria aconselhável exigir do interessado ou participante a observância ao adequado tratamento dos dados obtidos ao longo da experiência regulatória, inclusive após o seu término, em conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD – Lei 13.709/18) que entrará em vigor em 2020, mesmo ano do início da experiência da sandbox regulatória securitária.

No capítulo III, sobre a autorização temporária, o artigo 8º prevê a obrigatoriedade de adesão, por parte dos interessados, “às disposições estabelecidas no edital de participação, entre as quais a possibilidade de cancelamento sumário da autorização ou da comercialização dos planos de seguros, com imediata interrupção das operações e saída do mercado”. O ponto nevrálgico se encontra na possibilidade de cancelamento sumário da autorização temporária, e dele decorrem dois aspectos a demandar especial atenção.

Primeiro, a decisão do regulador pelo cancelamento da autorização temporária deve ser o resultado de procedimento administrativo específico para apuração do alegado descumprimento normativo, garantido o direito à ampla defesa e ao contraditório e demais garantias do devido processo administrativo, sob pena de vulnerabilidade da segurança jurídica, violação de normas constitucionais e infraconstitucionais, além de onerosa e desnecessária judicialização.

Segundo, o cancelamento da autorização temporária deve também tomar em consideração seus efeitos, cuja repercussão sobre o participante é deveras expressiva, uma vez que é exigido o elevado capital mínimo de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) como requisito de participação na sandbox. Além disso, deve-se considerar o perfil das empresas participantes da experiência, provavelmente empresas de pequeno porte, sobretudo insuretechs, muitas vezes excessivamente alavancadas, em relação às quais a decisão terminativa por parte da Susep acarretaria relevantes consequências financeiras.

No mesmo capítulo sobre a autorização temporária encontra-se o artigo 10º, de que é objeto a previsão de regulação dos “requisitos sobre provisões técnicas, ativos redutores da necessidade de cobertura das provisões técnicas, limite de retenção, capital baseado no risco, patrimônio líquido ajustado, capital mínimo requerido, liquidez em relação ao capital de risco, critérios para a realização de investimentos de demais ativos que não são garantidores de provisões técnicas, normas contábeis, auditoria atuarial e contábil independentes e comitê de auditoria”.

Em seu parágrafo único, o art. 10 prevê que a “Susep poderá dispensar total ou parcialmente os requisitos elencados no caput, além de simplificar suas exigências”. Novamente, percebe-se que tal dispositivo faculta excessiva discricionariedade à SUSEP para dispensar os requisitos inscritos no caput do artigo, inclusive na sua totalidade.

Embora seja possível compreender as razões que levaram a Superintendência a permitir a dispensa motivada de parte dos requisitos para conceder a autorização temporária, abrir mão da integralidade dos requisitos pode colocar em risco a higidez da técnica securitária e inviabilizar o exercício da supervisão por parte da Susep.

Por ocasião da proposição de sugestões, questionou-se, exemplificativamente, sob quais hipóteses e por quais motivos (objetivamente descritos) poderia a Superintendência afastar requisitos gerais sobre provisões técnicas para casos isolados ou para determinadas empresas em detrimento das demais participantes. Esses são pontos que precisam estar objetivamente definidos pela lisura que o projeto requer e que a legislação impõe.

No capítulo IV da minuta de resolução, a respeito do funcionamento da sandbox, o artigo 16 poderia, também nessa oportunidade, expressamente exigir a adequada conformidade dos parte dos participantes da experiência regulatória com as regras de uso e tratamento dos dados pessoais obtidos, consoante a já mencionada LGPD.

Mais adiante, o capítulo V, sobre a possibilidade de cancelamento e encerramento da autorização, em seu artigo 18 retoma mais uma vez a lógica do “cancelamento sumário”, perdendo a oportunidade de especificá-lo adequadamente. O cancelamento, reitera-se, deve ser o resultado de um procedimento administrativo com a finalidade específica de apurar o alegado descumprimento normativo, garantidos a ampla defesa e o contraditório, assim como as demais garantias do devido processo administrativo.

Em seguida, o art. 19 prevê, uma vez cancelada a autorização e sem que a sociedade promova a liquidação ordinária determinada, as sanções de: (1) “inabilitação dos administradores e controladores para o exercício de cargo ou função no serviço público ou em empresa pública, sociedades de economia mista e respectivas subsidiárias, entidades de previdência complementar, sociedade de capitalização, instituições financeiras, sociedades seguradoras e resseguradoras, pelo prazo de dez anos” e (2) “multa no valor de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais)”.

Observa-se aqui desmesura punitiva quando comparadas as sanções propostas pela Susep no bojo da sandbox àquelas atualmente aplicáveis aos dirigentes e funcionários das seguradoras atuantes no mercado tradicional. A propósito, o Decreto Lei n.º 73/1966 prevê, para a inabilitação e a aplicação de multa, parâmetros mínimo e máximo, e deixa claro o mandamento de que a sanção arbitrada seja equânime, e assim guarde compatibilidade com a com a gravidade da infração cometida. Ademais, as hipóteses que justificam o cancelamento da autorização temporária elencadas no art. 18 são múltiplas, algumas mais graves do que outras (por exemplo, a “inexatidão, ou informações falsas, nas declarações ou nos documentos apresentados”, que pode decorrer de culpa strico sensu, é circunstância de menor gravidade se comparada à hipótese de “descumprimento das condições para limites de riscos ou itens subscritos”). Ao aplicar a respectiva penalidade, a norma violada segundo um juízo de gravidade, deve ser tomada com consideração, para que a aplicação da sanção seja proporcional.

A disciplina do término do prazo de autorização se encontra no artigo 21, o qual prevê o cancelamento automático pelo decurso do tempo, bem como o cancelamento dos planos de seguro e a saída do mercado da sociedade participante da sandbox quando findo o seu período de participação no projeto. No entanto, cabe indagar: caso a experiência na sandbox venha a ser exitosa, a sociedade participante não deveria ter a possibilidade de, observados os requisitos inerentes, requerer sua habilitação para atuação em definitivo no mercado?

Em razão disso, poderia ser consignada na minuta de resolução, no próprio artigo 21 ou em outro dispositivo, a possibilidade expressa de conversão da autorização temporária para participação no projeto Inovação/Susep na habilitação para atuação no mercado tradicional.

Finalmente, no capítulo VI, sobre disposições finais, está inscrito o artigo 24, cuja redação requer esclarecimentos por parte da Susep, na medida em que não permite compreender se o mesmo pretende tratar da hipótese de: a) recepção de carteira proveniente de uma seguradora tradicional, previamente ao projeto Inovação/Susep; b) recepção de carteira proveniente de seguradora tradicional durante a execução do projeto Inovação/Susep; ou c) recepção de carteira proveniente de seguradora participante que tenha tido a sua autorização temporária cancelada.

Na sequência, o artigo 25 prevê a comunicação “imediata” por parte da sociedade participante na hipótese de materialização de risco extraordinário durante desenvolvimento de suas atividades. Verifica-se, nesse artigo, a necessidade de se estabelecerem o prazo e o marco inicial da sua contagem, questões elementares, sobretudo para apurar eventual responsabilidade do participante diante da verificação de riscos extraordinários de que o dispositivo cogita.

A minuta da circular da Susep sobre sandbox também foi estruturada com seis capítulos. Os artigos 1º e 2º versam, respectivamente, sobre a delimitação temática do ato normativo e os conceitos ali utilizados, seguidos de capítulos sobre pontos específicos. O capítulo I tratou da autorização em duas seções, que se encontram compreendidas entre os artigos 3º e 12 º. Em seguida, o capítulo II, mais extenso, trata dos produtos e coberturas em seis seções localizadas entre os artigos 13 a 21. O capítulo III regula os denominados “requisitos prudenciais”, divididos em cinco seções, compreendidas entre os artigos 22 a 40. O capítulo IV, disposto nos artigos 41 a 48, dispôs sobre a transferência da carteira. Por sua vez, o capítulo V, em único artigo (artigo 49), disciplina o cancelamento da autorização. Por fim, o capítulo VI, dos artigos 50 a 54, traz as disposições finais da minuta de circular.

Inicialmente, ressaltam-se duas objeções ao artigo 2º da minuta de circular, ao proceder as definições de capital base, capital de risco (CR) e capital mínimo requerido (CMR). A primeira objeção diz respeito à expressão “a qualquer tempo”, contida na definição dos dois primeiros quanto ao capital ali referido, a qual não toma em consideração a repercussão da atuação dos participantes mesmo após término do prazo do projeto Inovação/Susep, o que, aliás, deve ser objeto de regulação específica. A segunda objeção é feita à redação conceitual do capital mínimo requerido (CMR), por não deixar claro que se possa constituir de outro capital que não aquele estabelecido para o capital base para participar da sandbox.

O capítulo I, ao tratar da avaliação do projeto inovador a ser proposto em seu artigo 3º, estabelece que o comitê avaliador será composto, entre outros, por “1 (um) membro indicado pelas associações representativas das empresas de inovação no mercado de seguros”. Nota-se que o dispositivo não apenas silencia sobre qual associação estaria legitimada para representar o grupo de empresas de inovação no mercado securitário, como não estabelece critérios objetivos para a indicação na hipótese de haver mais de uma associação representativa dessas empresas e inexistir consenso sobre o nome a ser indicado. Como sugestão, poderiam ser adotados os critérios de qualificação e experiência, a serem especificados pela Susep.

O artigo 4º da minuta de circular segue a dispor sobre o comitê avaliador. Em seu parágrafo único, prevê a possibilidade de interação com “partes interessadas”, tais como “universidades, pesquisadores, entidades representativas e associações”, com o intuito de “firmar parcerias para a realização da avaliação dos projetos inovadores”. A expressão “parceria” mostra-se inadequada, posto ser a hipótese de convênio, conforme linguagem e preceitos do direito administrativo. Ademais, a Superintendência deixou de cogitar a hipótese de haver mais de uma ou várias “partes interessadas” dispostas à avaliação dos projetos e, em sendo este o caso, de oferecer mínima disciplina tanto para a seleção de uma em detrimento das demais, como para a administração desse esforço comum. Cabe ressaltar que o convênio a ser firmado deve ter o seu conteúdo publicado e disponibilizado ainda no curso de duração do projeto Inovação/Susep.

No artigo 5º, parágrafo 1º, consta a faculdade à Susep para solicitar documentos e informações adicionais, sem que esteja previsto qualquer prazo para o participante atender à solicitação da Superintendência. Durante esse processo de construção normativa, não pode o regulador deixar de considerar a possibilidade de o participante não poder apresentar os documentos ou prestar as informações de imediato, e, além disso, há de se eliminar a possibilidade de tratamento que não seja isonômico entre os participantes. Desse modo, a minuta de circular deveria ser, por razoável, retificada nesse ponto para prever tal prazo, preferencialmente prorrogável por ao menos uma vez.

Ao tratar especificamente do pedido de autorização e dos documentos a serem apresentados, o artigo 9º da minuta de circular permite concluir como impositiva a ligação do participante a grupo empresarial, o que inibe aqueles interessados que não sejam parte de grupo de participarem da sandbox. Essa disposição é discrepante do próprio intuito do projeto Inovação/Susep, além de não se comunicar em nada com a realidade e perfil das empresas disruptivas que o projeto visa atrair.

No capítulo II, quando explicita a vigência da autorização, no artigo 17, caput e parágrafo 1º, a minuta veda a renovação automática da cobertura contratada. Essa disposição não afasta, no entanto, a possibilidade de renovação negociada, a qual se compreende possível, mas deve ser regulada para que a cobertura contratada e renegociada observe a duração do projeto e a vigência da autorização concedida para essa finalidade.

Na parte em que disciplina os requisitos prudenciais, particularmente ao regrar as demonstrações financeiras e as provisões técnicas (capítulo III, seção I, artigo 29), a minuta oportuniza à Susep determinar aos participantes a utilização de “método específico para o cálculo das provisões técnicas e dos passivos das operações”, bem como a “constituição de Outras Provisões Técnicas (OPT) e/ou outros débitos da operação”. Uma determinação em tal sentido há de ser consubstanciada em parecer técnico, a ser elaborado pela respectiva área afim no âmbito interno da Susep.

A seguir, ainda no Capítulo III, ao versar o artigo 30 sobre capitais de risco, novamente permite compreender que o participante interessado integra grupo econômico, haja vista menção expressa à apuração de prêmios e sinistros nos 12 meses anteriores à participação na sandbox. Aqui se afigura outra incongruência com os próprios objetivos da experiência regulatória: o pretendente participante que optar por uma estrutura simplificada de investimento não pode ser penalizado por esta decisão, quando o espírito da sandbox é justamente garantir o desenvolver da inovação. A redação da minuta, tal como está, pode se mostrar mais benéfica competitivamente aos participantes integrantes de grupo econômico, restringindo aqueles que não integram um grupo econômico à disciplina sobre os capitais de risco inscrita no artigo 31 da minuta de circular.

O artigo 38, ao dedicar-se às “demais exigências prudenciais”, isenta os participantes da sandbox de contratar serviços de auditoria atuarial independentes. Apesar do intuito facilitador da não exigibilidade, é inegável que a auditoria pode auxiliar a empresa participante na elaboração de uma análise mais detalhada das suas atividades, aspecto que torna salutar e recomendável a sua exigência quando sopesadas as características particulares dos participantes, seu modelo de negócios, e a própria natureza da sandbox enquanto uma experiência regulatória inédita no mercado segurador.

O capítulo V, ao tratar do cancelamento de autorização, prevê no artigo 49, parágrafo único, o que chama de “hipóteses de cancelamento”. Uma delas se constitui em “índice de reclamação apurado acima de 1% (um por cento), de forma cumulativa”, objeto do inciso I, do mencionado dispositivo. Essa hipótese permite concluir que a tolerância do regulador com eventuais reclamações será limitadíssima, ainda que deva ser cumulada tal hipótese com outra qualquer.

Todavia, no âmbito de uma experiência com produtos inovadores e disruptivos, alguns desconhecidos pelo mercado, e em especial pelos consumidores, não é impossível que o volume de reclamações se mostre, por vezes, elevado. Nesse sentido, cabe lembrar das dificuldades verificadas no passado recente com o chamado cartão de crédito pré-pago e, ainda, com as eventuais dificuldades que surgirão no bojo das coberturas intermitentes, recentemente autorizada. A proposito, não se pode, de antemão, excluir a hipótese de que, uma vez mantidos níveis tão diminutos de aceitação de reclamações, se verifique a sua instrumentalização por concorrentes ou agentes de má-fé interessados na inviabilização das atividades do participante.

Com relação às demais hipóteses previstas no artigo 49, da minuta de circular, os critérios previstos nos incisos V, VI e VII não encontram correspondência entre aqueles elencados pela minuta de Resolução CNSP, motivo pelo qual clamam por correção. Seja pela garantia de segurança jurídica, seja pela promoção de uma técnica coordenada de regulação, é recomendável buscar uma harmonização entre ambos os atos normativos, uma vez que ambas as normas se propuseram a tratar do cancelamento da autorização de forma específica.

Considerações finais: uma experiência para novos atores?
A análise dos dispositivos da minuta de Resolução do CNSP e de Circular da Susep a respeito do “Projeto Inovação” (sandbox securitária) mostrou que o elogiável esforço por parte da Susep em apresentar à sociedade brasileira uma ferramenta de incentivo e governança da inovação em matéria de seguros corre o risco de se frustrar na medida em que muitas das regras tornem-se verdadeiros obstáculos às empresas de menor porte, muitas vezes aquelas com o maior potencial disruptivo.

O principal risco, caso prosperem inalteradas as minutas apresentadas, é o de que a sandbox se subverta em uma plataforma para a experimentação de novas tecnologias pelas seguradoras tradicionais, ou por seus braços digitais, criados especialmente com a finalidade de confundir os reguladores. Nesse cenário, o potencial inovador é instrumentalizado, e apenas encontra um lugar ao sol caso seja vendido aos seguradores tradicionais ou aceite subjugar-se aos seus interesses, inserindo-se na cadeia de valor da seguradora tradicional, prestando-lhe algum serviço.

O conteúdo das minutas apresentadas flerta com a disfuncionalidade e a captura ao ponto de ameaçar o sucesso no atingimento do objetivo imposto ao CNSP e à SUSEP: o de implementar um conjunto de normas que harmonize o acesso da inovação ao mercado sem deixar de zelar pelo seu equilíbrio econômico-financeiro, solvabilidade das empresas e proteção dos consumidores.

Isso se verifica sobretudo quando analisadas as minutas na sua integralidade, mas alguns dispositivos pontualmente analisados são indicativos da inadequação das normas propostas aos seus objetivos. São exemplos a restrição do escopo de participação no projeto às empresas subscritoras de risco, a tendente exigência de que integrem grupos econômicos e a provisão de elevados capitais mínimos de participação.

Assim, necessariamente devem ser aprimorados ou modificados os seguintes pontos nevrálgicos da minuta de Resolução CNSP: a) pretensão de irrestrita discricionariedade da SUSEP, como se pode verificar nos artigos 4º (cancelamento “a qualquer tempo” do edital), 8 (cancelamento sumário sem previsão de procedimento administrativo correspondente) e 10 (dispensa de requisitos essenciais à higidez técnico-atuarial); b) não harmonização das normativas à LGPD, como se verifica nos artigos 5º e 16; c) desproporcionalidade sancionatória prevista aos participantes da sandbox em relação àqueles atores do seguimento tradicional do mercado, constante do artigo 19.

Com relação à minuta de Circular SUSEP podem ser destacados os seguintes pontos: a) composição do comitê avaliador com regramento insuficiente quanto à participação de associação representativa, artigo 3º; b) insuficiência de regulação também quanto à participação de terceiros na avaliação do projeto, artigo 4º; c) regulação indicativa de ligação do participante a grupo econômico, inclusive com a possibilidade de opção por estrutura simplificada de investimento, o que poderá representar uma vantagem competitiva para alguns participantes em detrimento de outros, artigos 9º e 30; e d) possibilidade de a SUSEP determinar método específico para cálculo de provisões técnicas e passivos das operações sem justificativa técnica e de necessidade/oportunidade, artigo 29.

A superação de tais questões aumentaria as chances de sucesso da sandbox, geraria maior segurança jurídica no âmbito regulatório e tornaria as normas propostas mais adequadas à promoção de inovação e ampliação concorrencial do mercado, em benefício dos segurados. Afinal, a expectativa é que, concluído todo esse processo construtivo, o CNSP e a SUSEP apresentem ao “mundo dos seguros” um conjunto de normas coerentes com os objetivos que estão na gênese da ideia de sandbox, e não o contrário.


ANA MARIA BLANCO – advogada, especialista em direito civil e mestre em direito pela UFRGS, doutora em direito civil pela USP, membro do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS) e associada de ETAD – Ernesto Tzirulnik Advocacia.

VITOR BOAVENTURA – mestre em Regulação pela London School of Economics and Political Science (Reino Unido), membro do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS) e sócio de ETAD – Ernesto Tzirulnik Advocacia.

Fonte: Portal Jota