Em respeito ao Código Civil e ao segurado, STJ deve cancelar Súmula 229
De conformidade com o direito hoje vigente, deve-se atentar, em matéria de prescrição, fundamentalmente, para o disposto no Código Civil de 2002.
Diversas discussões se colocavam, sob a vigência do Código de 1916, com relação à interpretação do prazo prescricional. A principal discussão dizia respeito ao termo inicial do prazo prescricional previsto no artigo 178, parágrafo 6°, inciso II, do Código Civil anterior, segundo o qual prescrevia em um ano “a ação do segurado contra o segurador e vice-versa, se o fato que a autoriza se verificar no país, contado o prazo do dia em que o interessado tiver conhecimento do mesmo fato”. Como se nota, era necessária a ciência, pelo interessado, do fato que autorizava a ação. Mas que fato seria esse?
A doutrina e os tribunais, de início, dividiam-se. Havia, por um lado, quem entendia que tal fato seria o evento previsto no contrato de seguro passível de caracterizar o sinistro e, por outro, quem entendia que tal fato só poderia ser a recusa pela seguradora do aviso de sinistro do segurado, ou seja, a negativa da seguradora em efetuar o pagamento da indenização securitária.
Sustentava-se, neste último caso, que antes dessa recusa ainda não teria nascido a pretensão indenizatória, uma vez não havia motivo para buscar-se o Poder Judiciário para exigir da seguradora o cumprimento da prestação (teoria da actio nata). Este segundo entendimento vinha prevalecendo na doutrina e jurisprudência, mas o Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial 8.770, relatado pelo ministro Athos Carneiro, passou a considerar o seguinte:
A comunicação do sinistro, feita pelo segurado ao segurador nos termos do artigo 1.457 do Código Civil, não constitui “condição suspensiva” do contrato de seguro, e nem causa interruptiva do prazo prescricional. Durante o tempo em que a seguradora estuda a comunicação, até que dê ciência ao segurado de sua recusa do pagamento da indenização, considera-se apenas suspenso o prazo prescricional, que recomeça, de então, a correr pelo tempo faltante.
Como se vê, o entendimento acima autorizava disparar prazo prescricional do dia seguinte ao evento, o qual se suspenderia com o aviso de sinistro e voltaria a correr (de onde parou) com a negativa de cobertura. Eis o enunciado da súmula que veio a ser editada naquela época: “O pedido do pagamento de indenização à seguradora suspende o prazo da prescrição até que o segurado tenha ciência da decisão” (STJ, Súmula 229).
Entretanto, na prática, muitas situações se mostraram incompatíveis com a segurança jurídica necessária em matéria de prescrição, a ponto de apanhar os segurados em verdadeira emboscada típica da chamada prescrição diabólica.
Independentemente de a prescrição ânua da ação de seguro brasileira ser a mais curta do planeta, o simples fato de disparar prazo prescricional do dia seguinte ao evento, que muitas vezes não se sabe nem se caracteriza um sinistro, para ser recalculado pelo período remanescente que sobrevier à negativa da seguradora, ainda mais diante do prazo ânuo, gera verdadeiro estado de insegurança nos segurados, que são apanhados de surpresa por conta de um cálculo difícil de ser gerenciado na prática dos conflitos, até mesmo para os profissionais do contencioso securitário.
Por conta de dias, em alguns casos, chegou-se a considerar prescrita a ação promovida pelo segurado contra a seguradora, ajuizada exatamente um ano após a sua negativa em acolher a reclamação administrativa de pagamento da indenização securitária.
Era preciso, assim, para ter início o prazo prescricional, o conhecimento pelo segurado do fato verdadeiramente autorizador da pretensão.
Exemplo dessa preocupação foi o acórdão proferido, ainda sob o Código de 1916, no Recurso Especial 305.746, de que foi relator o ministro Fernando Gonçalves:
Na esteira de julgados da 2ª Seção desta corte, o termo inicial do prazo prescricional ânuo previsto no artigo 178, § 6º, II do revogado Código Civil Brasileiro, é a data em que o segurado teve conhecimento inequívoco da recusa do pagamento da indenização pela seguradora, fato este que faz surgir o direito de ação para o adimplemento coercitivo.
Eis o entendimento que parcela autorizada da doutrina reputa hoje o mais correto: o que antes se denominava “direito de ação” e hoje se refere como “pretensão”, na linha da teoria da actio nata, só nasce quando aparece a resistência da seguradora ao pleito indenizatório do segurado.
Esse entendimento, à luz do novo Código Civil, ganhou foros de segurança ainda mais evidentes. Antes de tudo porque, como visto, com o esclarecimento, no nível do Direito positivo, de que o que se prescreve é a pretensão, e não o direito, não se pode mais falar que o direito do segurado à indenização securitária possa prescrever, mas apenas que a sua pretensão ao reconhecimento desse direito é passível de prescrever, pretensão esta que não existe enquanto não recusado pela seguradora o pagamento da indenização.
Some-se a isso que, em matéria de seguros, o Código Civil de 2002 estipulou os prazos prescricionais no artigo 206, parágrafo 1º, inciso II, alíneas “a” e “b”, empregando dicção diversa da do diploma de 1916:
Art. 206. Prescreve:
§ 1°. Em um ano:
II − a pretensão do segurado contra o segurador, ou a deste contra aquele, contado o prazo:
a) para o segurado, no caso de seguro de responsabilidade civil, da data em que é citado para responder à ação de indenização proposta por terceiro prejudicado, ou da data que a este indeniza, com a anuência do segurador;
b) quanto aos demais seguros, da ciência do fato gerador da pretensão.
O elemento nuclear do enunciado é a alínea “b” do artigo 206. O prazo prescricional deve ser contado “da ciência do fato gerador da pretensão”. Mas o que se entende por pretensão? O artigo 189 do mesmo código responde: violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os artigos 205 e 206 . Ou seja, pretensão é a autorização que o sistema jurídico confere a alguém para exigir o cumprimento de uma prestação positiva ou negativa que lhe foi recusada.
No caso, a pretensão do segurado nasce no momento que ele toma ciência da negativa ou recusa do segurador em acolher seu aviso ou reclamação de sinistro. É este fato e não o evento remoto, afinal, que gera sua pretensão, ou seja, o interesse em reagir contra a resistência do direito. A partir da negativa do segurador, em outras palavras, é que pode o credor (segurado) usar da faculdade que a lei lhe confere de exigir o cumprimento da prestação indenizatória devida pelo segurador.
Esse entendimento acerca do termo inicial do prazo prescricional da pretensão do segurado em face da seguradora, no entanto, não decorre somente da dicção do dispositivo em questão. É também o que se deduz do clausulado dos mais diversos seguros, que estabelecem que, uma vez avisada do sinistro, a seguradora dará curso à regulação do sinistro. Isto é, a seguradora irá examinar os fatos e documentos, realizar levantamentos, investigar as causas do sinistro e apurar e liquidar os prejuízos dele decorrentes, manifestando-se então sobre a cobertura securitária e, em caso de acolher o aviso de sinistro, informando o valor da indenização securitária que está disposta a pagar.
Esse processo de regulação de sinistro ocorre, em outros termos, a partir da formalização do aviso de sinistro e do seu consequente registro pela seguradora. Ou seja, esta fica obrigada a regular o sinistro e, ao cabo desta, a reconhecer o direito do segurado à indenização, ou a manifestar sua recusa em efetuar o pagamento reclamado. Só então, neste caso, é que se dará a violação do direito do segurado ao pagamento reclamado, nos termos do artigo 189 do Código Civil.
A regulação do sinistro é a prestação de um serviço devido pelo segurador ao segurado ou beneficiário do seguro para o fim de possibilitar a aferição da existência de prejuízos indenizáveis ao abrigo do contrato de seguro. Antes disso nem o segurador pode prestar, nem o segurado tem o que exigir-lhe, senão a prestação desses serviços para a revelação da existência e da grandeza do crédito que surge com o sinistro e é fundado no contrato de seguro.
Nesse sentido, vale a pena conferir a crítica doutrinária voltada contra o critério diabólico da Súmula 229 nas obras citadas na bibliografia abaixo.
No plano da jurisprudência estadual, vale conferir o precedente construído pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro na Uniformização de Jurisprudência 8/2006, desembargadora Telma Musse Diuana, de 18 de junho de 2007.
Finalmente, cabe esclarecer que ao se fixar o termo inicial para o cômputo do prazo prescricional o dia da ciência pelo credor da indenização ou capital assegurado a respeito da negativa de pagamento apresentada pela seguradora ao fim da regulação do sinistro, não se está criando uma situação desfavorável para a seguradora.
As companhias de seguro são obrigadas a constituir, para todos os ramos em que operam, provisões de sinistros já ocorridos, mas ainda não avisados. Isso mesmo. As chamadas provisões IBNR (Incurred But Not Reported) existem justamente em razão de o mercado saber que acontecem sinistros que não são prontamente avisados, cabendo o controle dessas provisões à autarquia federal brasileira fiscalizadora da atividade seguradora, com base na experiência concreta do mercado e nos critérios técnicos mundialmente utilizados para a fixação das IBNR.
Logicamente, quando e se um segurado apresentar reclamação tardia que tenha levado a seguradora a uma situação de prejuízo, por não poder mais regular o sinistro ou por terem ocorrido agravamentos que, acaso atempadamente avisada pudesse evitar ou atenuar, o caso será de perda do direito ao seguro (artigo 771), regra de incidência de índole decadencial.
Por todas essas considerações é que o projeto de lei de contrato de seguro objeto do PLC 29/2017, envolvendo o consenso da Confederação Nacional das Seguradoras (CNseg) e da Federação Nacional dos Corretores de Seguro (Fenacor), previu (artigo 124, I, “e”) que “a pretensão do segurado para exigir indenização, capital, reserva matemática, prestações vencidas de rendas temporárias ou vitalícias e restituição de prêmio em seu favor,” prescreverá em um ano “após a recepção da recusa expressa e motivada da seguradora”.
Nessa perspectiva, o Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS), a título colaborativo, manifesta sua posição no sentido de que a Súmula 229 do STJ deve ser cancelada. Seu critério de contagem de prazo é diabólico, em desfavor do segurado, e inadequado com o sistema jurídico em vigor, à luz do artigo 189 do Código Civil de 2002.
Bibliografia
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Ernesto Tzirulnik é advogado especialista em Direito Securitário, doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS).
Por Ernesto Tzirulnik
Fonte: Portal Conjur