Ana Maria Blanco: A contribuição do seguro na liberalização do setor
É sempre importante grifar que a atividade econômica de exploração de petróleo e gás natural comporta expressivo risco.
O governo federal acaba de lançar o programa “Novo Mercado de Gás”, viabilizado por decreto que instituiu o Comitê de Monitoramento da Abertura do Mercado de Gás Natural (CMGN), com a participação ativa e coordenada do MME, junto à Casa Civil, ao Ministério da Economia (MEcon), Cade, ANP e à Empresa de Pesquisa Energética (EPE).
O programa foi antecedido por outras medidas concretas visando à ampla liberalização e concorrência no segmento do gás natural. Em junho deste ano, a Resolução 16/2019 CNPE tratou da questão pertinente ao gás natural. Estabeleceu princípios gerais da livre concorrência, diretrizes para transição ao mercado concorrencial, medidas estruturais e comportamentais impostas ao agente dominante no mercado, além de recomendar medidas ao próprio MME, como também ao MEcon, aos Estados e ao DF, incluindo privatização de concessionárias estaduais.
A ANP já havia promulgado a Resolução 794, de julho de 2019, dispondo sobre a publicidade de informações relativas à comercialização do gás natural e a promoção de concorrência, e anuncia, agora ,sua agenda regulatória para o segmento do gás natural, a qual compreende mudanças estruturais quanto ao transporte, com a revisão das mais importantes resoluções aplicáveis.
Mas não só: o programa ora lançado também fora precedido por Termo de Compromisso de Cessação (TCC) ajustado entre o Cade e Petrobrás, através do qual restou estabelecido a conclusão do desinvestimento estatal no segmento até dezembro de 2021, com a alienação de sua participação acionária nas principais transportadoras (NTS, TAG e TBG) e junto à distribuição, pela Gaspetro.
Tais medidas se justificam não só pelas últimas descobertas na Bacia Sergipe-Alagoas, ou por força do campo Azulão, no centro da Amazônia, mas em razão da realidade concorrencial no segmento de gás natural.
A Petrobras ainda domina todos os elos da cadeia. Isso se deve, em larga medida, pelo fato de a Lei 11.909/09 não ter tornado obrigatório o acesso aos gasodutos de escoamento, às Unidades de Processamento de Gás Natural (UPGN) e às plantas de regaseificação, o que inibe drasticamente a participação de outros agentes, além daqueles que administram tais estruturas essenciais.
A Petrobras participa de todos os consórcios detentores da concessão dos campos produtores de gás, e somente em um deles – gasoduto do Campo de Manati (BA), no qual detém apenas 35% – negocia após a etapa de processamento. Ainda assim, há contrato do consórcio com a Petrobras ajustando a venda do gás à estatal até 2030. A petroleira detém 99% da capacidade de processamento considerando-se as 14 UPGN’s existentes. Quanto à importação por gasoduto, em 2018, a Petrobras respondeu por 99,85% do volume de gás importado. No transporte, das cinco transportadoras, a estatal somente não tem participação direta ou indireta em uma delas. No segmento de distribuição e comercialização não é diferente: a Petrobras é a única compradora dos produtores, incidindo em monopsônio no upstream. Como consequência, é monopolista em relação ao atacado, incidindo na prática de self-dealing no downstream.
No que diz respeito ao petróleo e derivados, outras ações vêm sendo igualmente concretizadas. A Resolução 12/2019 CNPE estabeleceu priorização da conclusão de estudos pela ANP, os quais deverão ter como objetivo o aprimoramento do marco regulatório envolvendo questões sensíveis à comercialização de combustíveis e outros derivados de petróleo (comercialização por TRR ao revendedor varejista; tutela regulatória da marca comercial do distribuidor por revendedor varejista; acesso a terminais aquaviários para movimentação do petróleo e derivados etc.). Em observância a tal norma, a ANP promulgou a Resolução 795, de julho de 2019, prevendo a obrigatoriedade de apresentação de dados de preços relativos à comercialização de derivados de petróleo e biocombustíveis por produtores, importadores e distribuidores.
Impacto concorrencial
Essas medidas têm, também, razão de ser. Na distribuição de combustíveis, por exemplo, o mercado segue dominado por poucos grupos empresariais. Em levantamento da ANP, ano-base 2018, quase metade do mercado (46,3%) estava concentrado em apenas quatro agentes econômicos e seus respectivos revendedores/bandeiras: BR Distribuidora (17,7%), Ipiranga – Grupo Ultra (14%), Raízen (11,4%), Alesat (2,8%). Na outra fatia do mercado, correspondente a 43,8% e sob “bandeira branca”, os mesmos quatro agentes econômicos também participaram expressivamente na distribuição para revenda: Ipiranga, com 8,2%; BR Dist., com 7,4%; Raízen, com 5,7%; e Alesat, com 4,8%.
A recentíssima e esperada alienação do controle acionário da Petrobras quanto ao seu braço de distribuição de combustíveis, resultando na privatização da BR Distribuidora, também é importante passo à efetiva concorrência do setor. Com as profundas modificações estruturais e de governança da distribuidora, o impacto concorrencial sobre os dois outros principais distribuidores (Ultra e Raízen) é inevitável.
O segmento de refino de petróleo também é objeto de ação concreta em vista da liberalização. A Petrobras, em junho deste ano, firmou junto ao CADE outro TCC. A estatal assumiu o compromisso de alienar seus ativos no setor, abrangendo as refinarias RNES, RLAM, REGAP, REPAR, REFAP e REMAN (6 entre as 19 refinarias do país), sua participação na SIX (Xisto), LUBNOR e ativos de transporte. Superadas etapas de divulgação acerca do processo competitivo (teaser) e celebração dos esperados contratos de compra e venda, a empresa tem até 31 de dezembro de 2021 para fechamento das operações, momento no qual novos agentes econômicos deverão ter ingressado no setor.
Uma vez que se avance à liberalização do setor, outros tantos desafios terão lugar, seja em prol da manutenção do mercado concorrencial desejado, seja quanto aos efeitos de uma ampliada exploração, produção, transporte, distribuição e comercialização de hidrocarbonetos, e o seguro poderá ser determinante para o enfrentamento de tais desafios.
Com novos agentes econômicos dispostos à exploração, desenvolvimento e produção de petróleo (23, L 9.478/97) e do gás (L 11.909/09), novos contratos de concessão, observando-se as regras licitatórias, serão estabelecidos junto ao poder público e, possivelmente, já sob a égide da nova Lei de Licitações, se aprovado o PL 1292/95. Sob tal panorama, o quantum a ser contemplado em garantia – sendo o seguro uma das garantias possíveis, e quiçá, mais conveniente enquanto performance bond – será redimensionado: de 5% a 10% sobre o valor do contrato (art. 56, §1º, II, §2º e §3º, Lei 8.666/93) para de 10% a 30% sobre o valor do contrato (arts. 96 e 97, PL 1292/95).
É sempre importante grifar que a atividade econômica de exploração de petróleo e gás natural é de expressivo risco em si: há a presença riscos de engenharia, riscos ambientais, riscos por danos a terceiros etc. Sinistros como o ocorrido em 2001, na Plataforma P-36, bem demonstram isso. Não é, todavia, fato isolado. Há riscos do transporte, como revela o derramamento de cerca de 16 mil litros de petróleo na baía de Ilha Grande – Angra dos Reis, pelo Navio Brotas Transpetro (subsidiária Petrobrás), ocorrido em 2002. Há riscos associados à estrutura de acesso aos terminais, de que é exemplo a explosão no Terminal Vitória (operação BR Distribuidora), no Porto de Tubarão, ocorrido em 2015. Há riscos relativos ao armazenamento, de que dá conta a explosão de tanques de combustíveis ocorrida em terminal retroportuário de Santos, administrado por Ultracargo (integrante do Grupo Ultra-Ipiranga), também em 2015.
O seguro, além de uma garantia frente aos interesses inerentes à exploração de hidrocarbonetos, pode ser também instrumento determinante à boa governança empresarial e à adoção de práticas conformes ao direito. Como se sabe, a questão relativa à gestão dos riscos em atividades econômicas de grande expressividade assume papel relevante na contratação do seguro. E não só. Sendo estratégico à continuidade da atividade diante do infortúnio, poderá o seguro, em uma espécie de efeito colateral, ser essencial à seletividade no mercado.
A inobservância das normas jurídicas e técnicas pertinentes à atividade econômica que resulte no agravamento qualificado ou na própria concretização voluntária de riscos contemplados pelo seguro, por força da lei e da própria lógica securitária, afasta a garantia contratada. Disso pode resultar inviável o prosseguimento da atividade até então explorada. É desejável que assim seja, afinal, a livre concorrência que realmente interessa ao país: há de ser aquela marcada pela atuação responsável de seus agentes econômicos.
Ana Maria Blanco é advogada em Ernesto Tzirulnik Advocacia, atuando em Brasília, membro do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS), especialista e Mestre em Direito Civil pela UFRGS, doutora em Direito Civil pela USP.